A celebração do Dia da Europa, a 9 de maio, vai voltar a ser marcada este ano pelo contexto de guerra e de crise no continente. A poucas semanas das eleições europeias, os bispos católicos da União Europeia repetem apelos à participação e à preservação dos valores cristãos. D. Nuno Brás, vice-presidente da COMECE e bispo do Funchal, é o convidado desta semana da entrevista conjunta Renascença/Ecclesia
Entrevista conduzida por Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Ecclesia)
A Comissão dos Episcopados Católicos da União Europeia manifestou, na sua última assembleia plenária, apoio ao alargamento comunitário e disse que seria uma forma de promover estabilidade, paz e segurança perante a “guerra de agressão” da Rússia na Ucrânia. É um momento decisivo, para o futuro da União?
Nós, na União, estamos habituados a ter muitos momentos decisivos e parece que há um momento decisivo e depois logo se segue um outro momento decisivo. Mas sim, a perceção é que a Europa não pode ser simplesmente um clube daqueles que já estão integrados, que já vivem na Europa, um clube de países que vivem muito bem na Europa entre si e que excluem todos os outros. Até porque a reunião foi na Polónia e teve como base este último grande alargamento e a conclusão foi esta. Este último grande alargamento, de há 20 anos, tornou a União Europeia mais Europa, porque integrou um conjunto de países muito importantes. Agora trata-se, no fundo, de continuar este mesmo ritmo e, portanto, de permitir que a União Europeia não seja um clube exclusivo de países, mas seja um clube inclusivo, seja um grupo, uma união, uma comunidade inclusiva de todos os países europeus que nela queiram participar.
E o D. Nuno tem tido conversas com os bispos destes países, dos Balcãs e do Leste da Europa sobre esta matéria?
Sim. Eu creio que neste momento, mesmo aqueles países onde a opinião pública pode ser mais reticente, no fundo é reticente eventualmente a um modo de ser União Europeia, a uma forma às vezes intrusiva, uma certa confusão, se quisermos, entre aquilo que poderiam ser os Estados Unidos da Europa e aquilo que é a Comunidade Europeia tal como foi pensada e tal como foi idealizada e tal como é. Ou seja, trata-se de uma comunidade de países, de países independentes, não se trata absolutamente dos Estados Unidos da Europa.
O projeto comunitário nasceu num contexto de pós-guerra, como ideia de paz. É um sonho ameaçado, neste momento, ou é uma intuição que ganha cada vez mais relevância?
As duas coisas, ou seja, precisamente porque se trata de qualquer coisa ameaçada. Se a Ucrânia cair, ficar derrotada nesta guerra, obviamente vão seguir-se outros… em primeiro lugar, a Polónia sente este receio e isso encontrou-se de uma forma muito viva durante esta reunião dos bispos da União Europeia. Portanto, sim, o alargamento também traz consigo, necessariamente, garantias de paz. O alargamento da União Europeia, obviamente, para aqueles países que têm condições para a integrar, traz consigo também garantias de maior estabilidade, garantias de paz e de continuação deste sonho de paz europeu que esteve no início, na intuição dos pais fundadores da Europa.
Os episcopados católicos da União Europeia reagiram à proposta de inclusão do direito ao aborto na Carta dos Direitos Fundamentais, sublinhando que não se está perante um direito. Como se faz a defesa da vida, neste contexto difícil?
Nós precisamos de ver que a vida humana é um todo. Precisamos de defender a vida humana, esteja ela ainda no ventre materno, esteja ela ameaçada porque as condições sociais do país em que vivemos não a respeita, esteja ela ameaçada por uma guerra e uma guerra injusta. É toda esta realidade que nós precisamos sempre de ter em conta. E, neste sentido, é importante perceber que a vida humana é um valor que é essencial preservar e sem o qual a própria União Europeia se torna, depois, uma coisa meramente económica ou uma questão de lugares políticos ou questão de economia, simplesmente.
Não se trata disso. Precisamente a experiência da II Guerra Mundial, com tudo aquilo que ela trouxe – e não esqueçamos que a II Guerra Mundial não foi só a guerra propriamente, foi também tudo aquilo que ela trouxe de ideologias de apuramento da raça, por exemplo, de desrespeito por quem procura humanos quase perfeitos, em termos físicos e biológicos. Tudo isto, os horrores da II Guerra Mundial, trouxe consigo a criação de uma União Europeia baseada não apenas na procura da paz, mas também neste respeito pela dignidade do ser humano. E creio que é isto que é importante manter.
A tomada de posição dos episcopados sublinhava que a União Europeia não pode impor a outro, dentro e fora das suas fronteiras, posições ideológicas sobre a pessoa humana, a sexualidade, o género, o casamento e a família, entre outros. Esta é uma situação que pode colocar em risco o projeto comunitário?
Claro. Se nós fôssemos os Estados Unidos da Europa, poderíamos eventualmente idealizar uma arquitetura europeia em que, simplesmente, de Bruxelas se mandavam ordens para todos os países e todos os países eram obrigados a cumprir. É óbvio que algumas decisões de Bruxelas terão de ser adotadas, não temos dúvidas disso, mas depois existem realidades fundamentais em que cada país aparece com uma identidade muito própria. Ora, estar a colocar o aborto como um direito fundamental e, portanto, obrigar todos os países, indiscriminadamente, a adotar essa legislação é, obviamente, uma violação deste espírito de comunidade, rumo ao um estilo como os Estados Unidos [da América] – mesmo assim, nos EUA, vemos que nem todos os Estados têm a mesma legislação também a este respeito. É uma usurpação da própria ideia de Europa.
Este é um ano que marca um novo ciclo político na União Europeia e a comissão dos bispos católicos já apelou a um “voto responsável”, nas próximas eleições para o Parlamento Europeu, para promover “os valores cristãos” e o projeto comunitário. Pensa que é uma preocupação que acompanha os eleitores, na hora de decidir o voto?
Se não é, devia ser, precisamos de todos entender isto. Neste momento, é muito difícil imaginar-nos fora desta realidade que é a União Europeia. Seria uma revolução completa e seria, obviamente, uma perda para Portugal, creio que para a União e para todos. Penso que este é um sentimento comum em todos os países da União, até depois de vermos a experiência do Brexit e todas as dificuldades. Temos esta realidade, muito positiva, que é a União Europeia, que nós não queremos, não podemos querer que seja, simplesmente, uma realidade de contas de Excel – eu dou-te e tu dás – de economia, simplesmente. Tem de ser uma outra realidade assente em valores, tem de ser uma realidade assente em vida, em comunidade partilhada de vida. E creio que isto é o que é importante.
Diria, antes de mais nada, para percebermos quais são, verdadeiramente, as forças políticas disponíveis para construir para construir um projeto europeu que não seja, simplesmente, economicista, mas que seja um projeto humano e um projeto de comunidade, de comunidade de Estados, respeitando a identidade de cada um, mas ao mesmo tempo trabalhando em conjunto para uma Europa onde cada cidadão possa ser mais.
Além da questão da vida, que já abordamos, gostaria também de trazer aqui a questão da crise migratória que a Europa está a braços neste momento e que exige respostas comuns. Como é que vê o percurso feito neste sentido?
Muito mal. No fundo todos têm declarações interessantes, depois tudo acaba por ficar nas mãos da Itália e da Espanha, quando muito, e da Grécia. Mas, enfim, a Itália não tem sido o país que mais tem sofrido com todas estas crises migratórias.
Há falta de solidariedade dos outros Estados Membros?
Exatamente. Porque todos dizem que queremos acolher todos, de uma forma muito particular os países mais do Norte da Europa, que manifestam uma grande disponibilidade para acolher todos, mas depois é a Itália que resolve a questão. Creio que, verdadeiramente, a Europa precisava de crescer e de crescer muito mais em termos de acolhimento daqueles que nos procuram, obviamente procurando oferecer-lhes condições e procurando também que o desenvolvimento se realize nos países de origem, porque creio que é muito importante esta realidade. Os migrantes vêm para a Europa porque não encontram em suas casas condições de vida dignas e condições de vida, muitas vezes simplesmente.
Receia que o novo ciclo político na Europa possa ficar marcado por um aumento das forças políticas, populistas e extremistas, que de alguma forma condicionam a solução para essas crises migratórias?
Essa é a realidade que, de uma forma ou de outra, todos tememos. É óbvio que é importante também não sermos ingênuos e, portanto, é óbvio que são necessárias as regras, é óbvio que são necessárias as condições, mas também é óbvio que a Europa precisa de ser cada vez mais uma realidade de acolhimento. É óbvio também que é muito fácil clamar contra Bruxelas e, portanto, dizer que Bruxelas tem todos os defeitos deste mundo, mas o facto é que nós não conseguimos neste momento, nem queremos conseguir, passar sem esta realidade da União Europeia. Não se trata de destruir a União Europeia, de uma espécie de implosão. Creio que, neste momento, seria impensável, mas uma implosão da União Europeia seria uma desgraça para todos, para o mundo inteiro. Precisamos de ter isto bem claro, quer dizer, não queremos uma implosão da União Europeia, aquilo que queremos é melhorar a União Europeia. E isso parece-me ser um dos critérios muito importantes na escolha e na eleição do próximo dia 9 de junho.
Ainda nesse sentido, a COMECE e outras organizações representativas de igrejas na Europa assumiram uma posição conjunta contra o que chamaram de manipulação de valores cristãos por discursos racistas. Esta é uma situação que também preocupa?
É uma coisa muito interessante, que eu tenho verificado já há algum tempo, e por parte das mais diversas forças políticas, que é usarem linguagem, vocabulário cristão, desde as vigílias até às celebrações, desde a missão até à vocação também, e que nós cristãos usamos com frequência para depois lhe darem um outro conteúdo. E creio que devemos todos estar muito atentos a isso.
Isso chama-se enganar o eleitorado…
Sim, chama-se enganar o eleitorado, obviamente. No fundo, usar um vocabulário, palavras cristãs, para depois lhe dar um outro conteúdo, para depois modificar aquilo que é a intuição de base que está no uso destas palavras. E isso é feito tanto pela direita como pela esquerda. Por um lado, mostra que o nosso vocabulário é um vocabulário acertado, porque todos o escolhem, mas depois faz soar as campainhas de alarme, porque precisamente todos depois lhe um conteúdo diferente: estamos de acordo com as palavras, usamos as mesmas palavras, mas depois o conteúdo é bastante diferente.
Vai ser necessária também uma atenção de todos, e em particular dos bispos, ao crescimento de ideologias marcadamente racistas e xenófobas?
Essa é uma realidade e é uma realidade importante. Claro que é importante também depois não cairmos simplesmente na etiqueta e não cairmos simplesmente naquele raciocínio de que este é racista, e o outro não é. Bom, se calhar também é; talvez de uma outra forma. Precisamos de estar muito atentos a isto, claro que sim. Este é um perigo que a Europa corre e é um perigo a que não podemos deixar de estar atentos, na escolha dos nossos representantes na Europa.
Eu tenho, ao longo da entrevista, citado algumas das intervenções da COMECE e achei interessante uma iniciativa, até pelo contexto da realização da JMJ, que foi o contributo da plataforma juvenil desta Comissão, que elaborou um guia prático com vista às próximas eleições europeias. É muito importante promover, junto às novas gerações, esta ideia de participação na vida política como cidadãos e como cristãos?
Sim, eu creio que é mesmo essencial. Há alguns países em que o direito de voto é aos 16 anos e, portanto, fomos confrontados também com essa realidade e com essa necessidade de tentar também chegar a esse público quase adolescente neste momento e que vai ter direito de voto. E até se criou um desdobrável que está bastante bem feito, a todos os níveis; seja em termos de conteúdo, seja em termos de forma, o desdobrável está bastante equilibrado. Está também em português e, portanto, está acessível na página da COMECE para as várias línguas da União. Mas é um problema até porque, precisamente, notamos que facilmente os jovens são enganados por esse uso de linguagem que, aparentemente, sendo cristã, depois traz consigo um outro conteúdo, também, muitas vezes, xenófobo, racista, essas coisas todas. Portanto, trata-se de mostrar aquilo que está na base da União Europeia, aquilo que a continua a animar e aquilo que nós queremos que ela seja e de mostrar que não é votando contra a União, não é numa atitude de destruição da União que nós encontramos um ponto de saída, mas é, precisamente, ao contrário, numa atitude de construção da União Europeia, de integração e de comunidade, desta vida de comunidade de Estados que nós precisamos de apontar para o futuro.
Já que estamos a falar da participação, também, dos jovens, pergunto-lhe, porque tem sido, ao longo dos anos, um grave problema relacionado com a abstenção, que apelo é que se deve fazer aos eleitores para reverter os números de abstenção em eleições europeias que, em Portugal, atingem valores muito elevados?
É, e esse é, de facto, um perigo. E eu, até, como bispo do Funchal, sinto isso, até, de uma forma mais aguda, porque vamos ter mais umas eleições agora, em finais de maio, não é? Portanto, o ciclo eleitoral deste ano é um ciclo muito intenso e as pessoas podem ficar cansadas, muito simplesmente, podem ficar cansadas de todo este ritmo eleitoral muito intenso e pensar que a Europa, no fundo, é qualquer coisa lá longe, em Bruxelas, e não tem nada a ver com a nossa vida. Não é assim. É necessário fazer um apelo, e um apelo muito grande, que todos participem, não caindo naquela armadilha de pensar que a União Europeia, como está lá longe, em Bruxelas, é qualquer coisa que diz menos respeito à nossa vida e, portanto, da qual podemos passar. Não é verdade. A União Europeia diz respeito à nossa vida, à nossa vida muito concreta e, de uma forma muito particular, a esta vida que garante a paz e que garante os valores da vida humana, que quer garantir os valores da vida humana.
Falou das eleições na Madeira e também da sua preocupação quanto aos elevados níveis de abstenção. Receia que nas próximas eleições regionais também se venha a verificar uma elevada abstenção, até pelo facto da forma como se chega a este processo eleitoral. E já agora se o quadro político, depois das eleições regionais, se vai alterar do seu ponto de vista de forma substancial?
Creio que neste momento ninguém pode fazer esse tipo de especulação. Podemos ter intuições, mas não deixam de ser isso mesmo intuições. Eu creio que, de uma forma muito particular, os madeirenses estão habituados a participar, estão habituados a votar. Eu espero que, de uma forma ordeira e de uma forma como tem sido sempre, todos os madeirenses participem, seja nas eleições regionais, seja nas eleições para o Parlamento Europeu. E, portanto, de uma forma muito responsável, porque essa é também a tradição do povo madeirense.
Olhando para este próximo dia da Europa que preocupações é que mais o acompanham neste momento e que votos deixa para a celebração deste dia?
Em primeiro lugar, que este dia seja um dia de celebração da Europa, de celebração desta realidade muito bonita e desta realidade que estamos a construir todos os cidadãos da Europa. Que estamos a construir com esforço, mas que estamos a construir e que é um exemplo na história universal de países que se entreajudam para construir qualquer coisa de muito bonito e de muito bom. E, portanto, que este dia seja verdadeiramente de celebração e de entusiasmo pela Europa. Claramente precisamos de uma Europa que defenda a vida, de uma Europa que defenda a possibilidade de todos viverem com a dignidade que lhe é própria. Os europeus, aqueles que não sendo europeus, chegam e batem à nossa porta para que os acolhamos.