Devoções populares na música judaica, árabe e cristã

No âmbito do Festival Terras Sem Sombras, realiza-se a 12 de Janeiro, na Igreja Matriz de Santo Ildefonso, Almodôvar, pelas 21h00, o segundo concerto daquele ciclo. As músicas, escolhidas para o tema “Oriente e Ocidente: As devoções populares na música judaica, árabe e cristã”, serão interpretadas pelo Ensemble Hispânia (Fernando Gomes, José Manuel Tavares, Susana Dinis Moody e Victor Gaspar). Se é verdade que a História regista antagonismos e conflitos entre judeus, árabes e cristãos, não é menos certo que a Península Ibérica é herdeira de cada uma dessas culturas e das suas mútuas influências. Transcrevemos seguidamente um texto preparado para o Festival Terras Sem Sombras a propósito das composições que farão parte deste concerto, cujas obras escolhidas podem ser consultadas no fim deste artigo. Ibéria para os Gregos, Hispânia para os Romanos, Sefarad para os Hebreus, Al-Ândalus para os Árabes, muitos foram os nomes dados a uma só península no Sudoeste da Europa, ponto de partida e de chegada de uma babilónia de gentes, culturas e tradições, não sendo por mero lirismo que, a seu tempo, Camões a descreveu como “Onde a terra se acaba e o mar começa”. Aos Celtiberos juntaram-se Fenícios, Cartagineses, Judeus e Gregos, derrotados pelos Romanos, sucedidos pelos Visigodos, que subjugaram os Suevos e expulsaram os Vândalos, empurrados para Norte pelos Árabes invasores, reunidos em cinco reinos da Hispânia e, finalmente, no dealbar do Renascimento, definidos em duas nações, Portugal e Espanha. E se o Mediterrâneo foi, fundamentalmente, a porta de acesso de todos estes povos, também foi por este mar que nos chegaram os três vectores fundamentais da cultura ibérica, o cristão, o árabe e o judaico – associados, obviamente, aos contornos precisos das religiões que escudavam. Ao debruçarmo-nos sobre o percurso de cada uma destas culturas na Península ao longo do período medieval, cedo verificamos que não só houve uma assumpção de uma cultura dita “popular”, paralela a uma outra de cariz “erudito”, como também, facto inegável, existiu uma interacção permanente entre elas, moldada ao sabor do tempo e das circunstâncias. O reinado de D. Afonso Henriques (1109-1185) é paradigmático no que toca a esta convivência de interesses. Se, por um lado, guerreou os mouros, conquistando-lhes cidades, por outro permitiu que permanecessem nos territórios, de forma a não os despovoar. E se os judeus representavam os algozes de Jesus aos olhos dos cristãos, foi a eles, e em concreto, ao seu líder, Yahia Ben Yahia, que o novo soberano entregou a responsabilidade de colectar impostos no reino, mantendo-se esta tradição ao longo da dinastia borgonhesa. Do ponto de vista estritamente musical, todas as considerações tecidas sobre o período que analisamos redundam em aproximações, por força de uma escassez de fontes. Contudo, é possível traçar, tenuemente, o percurso do repertório sacro, através de alguns códices, bem como de um género poético-musical, de cariz aristocrático, a poesia trovadoresca galaico-portuguesa, assente, exclusivamente, nos Pergaminhos Vindel e Sharrer. Quanto às manifestações musicais associadas a uma cultura de cariz popular, onde pontificavam os jograis, músicos e poetas de origem plebeia, apenas subsistem descrições muito pontuais em fontes literárias de natureza diversa. Impõem-se, contudo, algumas excepções neste panorama. E se tal acontece, ficamos a devê-lo a alguns eruditos que, por razões diversas, registaram os contornos peculiares de que a devoção popular medieval se revestia, sendo exemplos do que anteriormente se afirmou as Cantigas de Santa Maria e o Llibre Vermell de Montserrat. Digno representante de um incipiente, mas primeiro, Renascimento que floresceu pela Europa do século XIII, Afonso X, o Sábio (1221-1284), notabilizou-se ao longo do seu reinado pelo fomento da actividade cultural. A ele se deve, por exemplo, a adopção do castelhano como idioma oficial dos reinos de Castela e Leão, em detrimento do latim, ou a revitalização da Escuela de Traductores de Toledo, onde eruditos cristão, judeus e muçulmanos vertiam para latim e castelhano obras fundamentais da cultura árabe e hebraica, constituindo-se como um dos pilares essenciais do Renascimento científico europeu. Mas, da sua extensa e diversificada obra ao nível das Leis, Libro de las Leyes [conhecido desde o século XIV como Siete Partidas], da História, General Estoria, ou até da Astronomia, Tablas Alfonsíes, Afonso X ficou indelevelmente associado ao monumental cancioneiro da literatura galaico-portuguesa que mandou coligir, as Cantigas de Santa Maria. Descrevendo milagres ocorridos graças à intervenção da “Santa Dama”, ou enaltecendo o Seu papel de Mãe dos crentes, as Cantigas de Santa Maria integram, ainda, as Cantigas das Cinco Festas de Santa Maria, as Cinco Cantigas das Cinco Festas de Nostro Señor, o Cantar dos Sete Pesares que viu Santa Maria de seu fillo e uma Maia, curiosa alusão às culturas grega (Maya era a maior das Plêiades) e romana (Maia Maiestas ou Bona Dea, a boa deusa), totalizando 427 poemas. A cantiga Santa Maria amar [n.º 7] narra-nos o curioso episódio de uma abadessa que, tendo engravidado do seu escudeiro bolonhês, é chamada à presença do bispo de Colónia. Ciente do grave castigo que a espera, a jovem abadessa cai em devota e pia oração aos pés da Virgem Maria, a qual, como num sonho, aparece acompanhada de dois anjos, que lhe tiram o filho do ventre e o entregam a um eremita, salvando a abadessa da punição eminente. A cantiga Non sofre Santa Maria [n.º 159] faz parte de um conjunto de peças que relatam os milagres de Nossa Senhora de Rocamadour, local de peregrinação no Sudoeste francês. Ao verificarem que um pedaço de carne da sua ceia havia sido roubado, os peregrinos, famintos, imploram à Virgem que o ladrão seja encontrado. Quando uma criada se denuncia, os peregrinos apressam-se a ir rezar ao santuário em acção de graças pela intercessão mariana. Outro exemplo da devoção popular – e da música a esta associada – é o Llibre Vermell do santuário da Virgem Maria de Montserrat, mosteiro beneditino catalão e local de peregrinações frequentes ao longo da História. Escrito entre os finais do século XIV e os princípios do XV, o Llibre Vermell contém dez melodias associadas ao culto mariano: uma balada (Los set gotxs), um motete (Imperayritz), três canções (O virgo splendens, Laudemus Virginem e Splendens ceptigera) e cinco virelai (Stella splendens, Mariam matrem, Polorum Regina, Cuncti simus e Ad mortem festinamus). De carácter dançante (está indicada como sendo uma dança de roda), a balada Los setgotxs [fl. 23 v.º] é constituída por duas frases musicais em tudo idênticas, e um refrão (na terminologia da época, envoi), estrutura sintetizada pela fórmula aaB. O virelai Cuncti simus [fl. 24 r.º] é constituído por um refrão (estribillo) seguido de duas frases musicais idênticas (mudanzas) e, de novo, o refrão (vuelta), correspondendo à estrutura musical AbbA. De notar, ainda, o jogo elegante que resulta da alternância entre os modos rítmicos troqueu e jâmbico, recurso, também ele, utilizado no virelai Polorum Regina. Em oposição a estas obras, devoções populares registadas por eruditos, está um dos fenómenos mais interessantes de todas as culturas, do Oriente ao Ocidente, das Américas à Oceânia, que é o fenómeno da tradição oral. Antes de mais, é importante desfazer a ideia, tantas vezes aplicada à música (e também aos rimances, contos populares, etc.), da criação colectiva. Nunca se viu o povo a compor todo junto; pelo contrário, numa dada época, um autor necessariamente individual, compôs e recriou a partir de um substrato musical e poético que lhe foi fornecido pela tradição. Assim, este fenómeno deverá ser entendido à luz das premissas de permanente mutação e recriação. Neste sentido, verificamos que as influências musicais que estiveram na origem do riquíssimo cancioneiro tradicional português são várias, não esquecendo as condicionantes geográficas e sócio-politicas, percepcionando-se três linhas principais, a do cantochão (hispano-aquitânico), a da música do Al-Ândalus e a da música judaica. É, em particular, em zonas da raia, que encontramos uma interacção profunda entre estas culturas musicais. O Canto da Verónica, da região de Redondo (Évora) mistura reminiscências do cantochão com melismas da música do Al-Ândalus, resultando numa das obras mais fascinantes do repertório tradicional português. Não podemos esquecer que a tradição musical do Al-Ândalus, mais do que música árabe, é definida, por autores eruditos, entre eles Leo Plenckers, como uma tradição híbrida de pendor ocidental, em termos formais, próxima dos cânones peninsulares mas, em termos rítmicos, da diversidade e complexidade árabe, tendo atingido o seu grau mais alto de integração em pleno século XII. Tal é perceptível na importantíssima transcrição feita por Benjamin Liu e James Monroe, em 1989, de dez canções da tradição oral. Por último, os romances que narram as desventuras daqueles que, pela sua Fé, foram postos a ferros e condenados ao cativeiro, com música e texto de características estróficas, com redundâncias e mnemónicas típicas dos romances de tradição oral. O Romance do Cativo, de Aljezur (Algarve), conta a história de um cavaleiro cristão que é salvo das masmorras graças a uma moura que, perdida de amores, lhe paga o resgate. O mais interessante é que este mesmo romance, com a mesma história, palavras e música foi identificado por musicólogos em aldeias de Israel e versões semelhantes em aldeias do norte de África. Ou seja, sefarditas fugidos às perseguições manuelinas e mouros fugidos ao domínio católico, levaram consigo esta história e mantiveram-na oralmente de geração em geração. Numa época em que, de novo, muitos são feitos cativos em nome da crença que professam, é oportuno relembrar as sábias palavras de Ibn Arabí, de Múrcia (século XIII), pupilo de Al-Oriani, de Al-Ulya (Loulé): “O meu coração abriu-se a todas as formas: é uma pastagem para as gazelas, um claustro para os monges cristãos, um templo de ídolos, Caaba de peregrinos, as tábuas de Tora e o Corão […]. Qualquer que seja a direcção em que as caravanas avancem, a religião do Amor será sempre o meu credo e a minha fé.” Programa do Concerto Música Cristã Medieval, Cantigas de Santa Maria (Séc. XIII) Cantiga de Santa Maria n.º 159 Cantiga de Santa Maria n.º 7 Romances do Cativo: Tolerância e Fé Romance do Cativo (Aljezur, Algarve) Ya viene el cativo (Tradicional Andaluza) Música Tradicional Portuguesa Canto da Verónica: O vos omnes (Redondo, Évora) Para o São João (Beira Baixa) Moda das casadas (Beira Baixa) Música Árabe e Música Contrafacta Judaica Hisp ânica (Al-ândalus) Lamma badda (tradicional andaluza) Ayyu-ha s-saqi (tradicional andaluza, século XII) Gran consejo de los santos (Khlas núba reml, garnati de Argélia) A Tí, Señor, rogaré (Anónimo, século XIV) Dios me protegerá (tradicional judaico-marroquina) Pájaro en vuelo (tradicional andaluza) Música Cristã Medieval, Canto de Peregrinos do Llibre Vermell de Montserrat (sécs. XIV/XV) Cuncti Simus Concanentes (Virelai, fl. 24 r.º) Los Set Goyts (Balada, fl. 23 v.º) José Bruto da Costa www.snpcultura.org

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