«Deus é rejeitado nas decisões da vida humana» – D. José Traquina

Homilia do bispo de Santarém na Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo

Foto: Diocese de Santarém

Irmãos e Irmãs

Depois de, no passado Domingo, termos celebrado a Solenidade da Santíssima Trindade, hoje somos convidados a celebrar com alegria a Festa do Corpo de Deus, Solenidade do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Esta Solenidade tem em si o reconhecimento de que Jesus Cristo é Deus com o Pai e o Espírito Santo e justifica-se que aconteça a uma Quinta-feira por ter sido neste dia da semana que Jesus celebrou a sua Ceia com os discípulos.

A primeira leitura (Gen 14,18-20) situa-nos no início da história do povo hebreu para nos informar que, depois de ter saído vitorioso de uma luta com inimigos, Abraão foi visitado por Melquisedec, rei e sacerdote, que se apresentou com pão e vinho e abençoou-o invocando o Deus Altíssimo.

Quem seria este rei sacerdote Melquisedec? É uma referência sacerdotal que não promove sacrifícios com imolação de cordeiros ou outros animais, mas apenas com pão e vinho. Foi uma tradição que permaneceu no decorrer do tempo de tal modo que o Salmo 109 (110) referencia o sacerdócio de Melquisedec a pensar no rei Davi, e os cristãos cantam-no a pensar em Jesus. Melquisedec e o seu sacerdócio foi, no início da Igreja, interpretado como a origem e fundamento do modo como Jesus instituiu o memorial da sua Páscoa, a sua entrega na cruz, a ser celebrada com pão e vinho.

O autor da Carta aos Hebreus vai ensinar que Jesus é verdadeiramente sacerdote segundo a Ordem de Melquisedec porque, igualmente, se serviu de pão e vinho. Mais, porque Melquisedec (cf. Heb 7) “era rei de Salém, que quer dizer ‘rei de paz’, sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de dias nem fim de vida, assemelha-se ao Filho de Deus e permanece para sempre” (Heb 7,2-3).

Na segunda Leitura (1 Cor 11,23-26) São Paulo teve necessidade de corrigir os coríntios sobre a forma de celebrar a Eucaristia. “Recebi do Senhor o que também vos transmiti”, diz o Apóstolo, referindo de seguida as palavras corretas da consagração do pão e do vinho como Jesus ensinou.

A Eucaristia tem a ver com a vida: “Fazei isto em memória de Mim” (Lc 22,19), não significa  somente: ‘Fazei os gestos que Eu fiz’, ou ‘repeti o rito que Eu realizei’. “Fazei isto em memória de Mim” é mais abrangente e podemos entender deste modo: “Fazei a entrega que Eu fiz; oferecei-vos também vós em sacrifício, como vedes que Eu fiz!”. “Dei-vos o exemplo, para que, como Eu vos fiz, façais vós também” (Jo 13,15)» (RC 23).

Neste dia em que novos Ministros extraordinários da Sagrada Comunhão recebem o mandato para três anos de exercício do ministério, importa salientar o cuidado permanente da formação cristã. Todos os servidores da Eucaristia devem procurar a melhor formação e estar conscientes da dimensão sagrada do seu ministério e do testemunho da vida pessoal.

Partilho convosco uma palavra de São Tomás de Aquino, célebre teólogo do século XIII, contemporâneo de São Gil de Santarém e pertencente à mesma Ordem Dominicana. Referindo-se à Eucaristia, começa por interrogar:

“Que há de mais salutar e admirável que este sacramento? Nele se purificam os nossos pecados, aumentam as virtudes e se nutre a alma com a abundância dos dons espirituais. É oferecido na Igreja pelos vivos e pelos mortos para que a todos aproveite, já que para todos foi instituído como remédio de salvação. Ninguém seria capaz de exprimir a suavidade deste sacramento, no qual se pode saborear a doçura espiritual na sua própria fonte e em que celebramos a memória daquele imenso e inefável amor que Cristo nos mostrou na sua paixão. Para que a imensidade deste amor se gravasse profundamente no coração dos fiéis, quando ia passar deste mundo para o Pai, Cristo, na sua última Ceia, celebrada a Páscoa com os seus discípulos, instituiu este sacramento como memorial perene da sua paixão, como o cumprimento perfeito das antigas figuras e a mais admirável das suas obras”.

(Opusculum 57, In festo Corporis Christi, lect, 1-4, cit. pela Liturgia das Horas).

O Evangelho (Lc 9,11b-17) de São Lucas que escutámos, permite-nos imaginar um espaço aberto onde uma multidão de pessoas escutava Jesus a falar sobre o Reino de Deus. Os discípulos pedem a Jesus que mande embora aquela gente, pois o dia estava declinar e havia poucos alimentos. Mas Jesus desafia os seus discípulos a serem eles mesmos a garantirem o alimento necessário. “Dai-lhes vós de comer”. Jesus exige que os seus discípulos façam parte da solução.

A escuta da Palavra e os cinco pães e os dois peixes que Jesus abençoa e multiplica para saciar a multidão, ajuda-nos a valorizar a Eucaristia que celebramos e a valorizar todos os gestos de partilha que possamos promover. A bênção da Eucaristia é sempre de Cristo, e a multidão é sempre olhada por Jesus com todo o interesse e com todo o amor.

Jesus interessa-se pela multidão de pessoas; pessoas não só famintas de pão, mas carenciadas de paz, de dignidade, de esperança, de garantia de direitos humanos. A celebração da Eucaristia, é sempre a celebração deste Amor de Cristo pelas pessoas, Amor em que Jesus quer os seus discípulos envolvidos para que estejam inteiramente ao serviço do Reino de Deus.

É bom testemunhar o privilégio do dom da Fé e da participação na Eucaristia. Muitas pessoas batizadas não descobriram ainda a alegria e a beleza da celebração da Eucaristia. O Papa Bento XVI deixou-nos o apelo: “não podemos reservar para nós o amor que celebramos neste sacramento [da Eucaristia]: por sua natureza, pede para ser comunicado a todos. Aquilo de que o mundo tem necessidade é do amor de Deus, é de encontrar Cristo e acreditar n’Ele. Por isso, a Eucaristia é fonte e ápice não só da vida da Igreja, mas também da sua missão: «Uma Igreja autenticamente eucarística é uma Igreja missionária.» (Sacramentum Caritatis 84).

Irmão e irmãs, na nossa Diocese estabelecemos um percurso pastoral de seis anos, entre 2019 e 2025, tendo cada ano referência a uma palavra, um valor, um sacramento e um testemunho de santidade. Para este último ano (2024-2025) a palavra é ‘celebrar’, o valor é gratidão, o sacramento é a Eucaristia e o testemunho de santidade é o pastorinho São Francisco Marto.

Num tempo com tantas guerras e conflitos e com registo de perseguição a cristãos por motivos religiosos e de aumento de violência entre pessoas, também em Portugal, Deus é rejeitado nas decisões da vida humana. Porém, Deus não desiste de amar a sua criatura e quando os adultos rejeitam a sua presença, há crianças disponíveis para escutar a sua voz. Em Fátima, em tempo da primeira guerra mundial, a Voz foi Nossa Senhora e o pastorinho São Francisco Marto foi um Sim correspondente de bondade, cultivando uma profunda amizade ao Jesus da Eucaristia e deixando-se transformar no interesse pela humanidade, pela natureza e pela paz do mundo.

Também agora a sociedade precisa do testemunho dos cristãos, nomeadamente nas virtudes e valores humanos a cultivar nos relacionamentos que temos. Agradeçamos a Deus o dom da Eucaristia, rezemos com gratidão por quem nos precedeu e alegremo-nos pelo dom da Fé e pela missão que nos é confiada.

D. José Traquina,

Bispo de Santarém

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