Despertar nas almas o sentido de igreja

D. Manuel Pelino, Bispo emérito de Santarém 

Foto: Agência ECCLESIA/MC

Observava Romano Guardini, teólogo que no início do seculo XX antecipou e preparou a teologia do Vaticano II, que “a Igreja desperta nas almas”. De facto, os crentes católicos começavam a tomar consciência de que não eram apenas clientes dos serviços religiosos, mas chamados a participar ativamente na vida e na missão eclesial. Para esta identificação dos fiéis com a Igreja muito contribuiu o movimento “Ação Católica”. O Concílio Vaticano II veio confirmar e fortalecer esta visão da igreja, apresentando-a como o “povo de Deus” em que todos os fiéis são enriquecidos pelo Espírito Santo com variados dons ou carismas. Assim, todos são capacitados com “o sentido da fé e o dom da palavra” (LG 12), para que participem na missão profética e sejam cidadãos ativos na igreja. Os fiéis começaram então a considerar: “A igreja somos nós, todos somos igreja”. A expressão “corresponsabilidade” entrou no vocabulário dos fiéis. A prática demorará mais tempo a verificar-se.

Na América Latina o Conselho Episcopal Latino Americano (CELAM) apresentava, entretanto, a identidade dos fiéis cristãos com a expressão “discípulos missionários”. Discípulos que seguem o caminho do Mestre, progridem na fé, na esperança e na caridade; e missionários enviados pelo Senhor a construir a justiça, a paz e a fraternidade, tornando-se fermento do reino de Deus no mundo. A expressão “discípulos missionários” realça o rosto de Cristo como referência de cada cristão e da igreja e contribuiu a desenvolver e a amadurecer a sinodalidade que atualmente se tornou a prioridade pastoral. Os dois Papas recentes, Francisco e Leão XIV, são frutos visíveis e eloquentes desta eclesiologia muito inspirada pelo estilo concreto de Jesus de Nazaré e fundamentada no Concílio Vaticano II.

Outro contributo importante para o despertar do sentido de Igreja nos fiéis veio dos “Movimentos Eclesiais” que criaram nos seus membros a consciência de pertença e do dinamismo missionário da Igreja. Neste contexto pastoral, o Sínodo de 1987 sobre a vocação e a missão dos féis leigos na igreja e no mundo, referia-se a uma “nova era agregativa dos leigos” e considerava este fenómeno como um dom do Espírito Santo para o nosso tempo. Podemos verificar que as paróquias que conjugaram a sua missão global com ação destes Movimentos, encontraram uma valiosa ajuda para o desenvolvimento da comunhão eclesial e da orientação missionária.

Viveu-se assim, na segunda metade do século XX, fruto do Concílio e da teologia renovada, uma onda de otimismo sobre a participação dos fiéis na vida e missão da igreja. Os papas pós-conciliares, desde João XXIII até Francisco e agora Leão XIV, animaram e guiaram esta renovação. Terá chegado às bases, às paróquias, aos grupos e fiéis em geral? A forte onda de secularização do século XXI parece ter afastado muita gente e gerado a moda do agnosticismo. Os pastores que orientam as comunidades diminuíram também. Mas, embora sejamos menos, temos a força do Espírito, o poder da graça da Palavra e dos Sacramentos e o momento oportuno para progredir na comunhão e na missão da Igreja. O ambiente de individualismo e de solidão geram um sentimento de desamparo e de vazio e sensibilizam as pessoas para a experiência de vida comunitária. Por outro lado, toda a gente deseja ter uma missão, ou seja, uma vida irradiante, com sentido e conteúdo. Deste modo, a identidade da Igreja realçada pelo Concílio como comunhão de fiéis orientada à missão, corresponde aos anseios profundos do coração humano. A esta situação favorável acresce a pedagogia amadurecida da sinodalidade. Temos pernas para andar e gente com vontade de fazer caminho.

Os cinquenta anos da criação da Diocese que estamos a celebrar em Santarém tornam-se um desafio a progredir no desenvolvimento da renovação conciliar. O Jubileu é motivo de celebrações e de encontros festivos que despertam alegria, aproximam, criam e avivam laços fraternos. Mas seria pobre permanecer nos encontros festivos e celebrativos. Tenhamos presente a recomendação muito oportuna do Papa Francisco para “privilegiar o tempo e não os espaços” (EG 222-225). É gratificante ter os espaços com muita gente nas celebrações, na igreja, nos encontros. Mas pode ser, e muitas vezes é, um cristianismo exterior, lisonjeiro para quem preside mas vazio, sem chama interior, sem força de transformação, sem vigor missionário. Não basta ter muita gente na festa ou bastantes que ainda pedem os sacramentos. É importante promover percursos de formação cristã que amadureçam uma experiência de encontro com Cristo e de pertença ativa e esclarecida à Igreja.

(Os artigos de opinião publicados na secção ‘Opinião’ e ‘Rubricas’ do portal da Agência Ecclesia são da responsabilidade de quem os assina e vinculam apenas os seus autores.)

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