Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
No início deste período da Quaresma percebemos que o Espírito Santo terá conduzido Jesus para o deserto antes de iniciar a sua missão. Diz-nos a Escritura apenas que terá jejuado durante esses dias antes de ser tentado. Ao pensar neste período de que a Escritura fala pouco, questionei-me o significado que pode ter para nós na cultura em que vivemos.
Encontro com o interior
No início das suas funções como Presidente, Abraham Lincoln retirava-se frequentemente para uma casa de campo próximo da Casa Branca. Na quietude que circundava essa casa, Lincoln procurava o sentido dos traumas vividos na Guerra Civil americana e pensar nas decisões difíceis que enfrentava durante esse período.
Na década de 1920, o psicólogo Carl Jung tinha o hábito de se retirar por períodos de tempo para uma casa de pedra rústica que construiu na floresta, junto à pequena cidade de Bollingen para escrever sem interrupções. Além disso, meditava e passeava pelos bosques nas imediações para clarificar as ideias que surgiam na sua cabeça e, assim, preparar a escrita a fazer no dia seguinte.
Adam Grant, psicólogo americano e professor na Wharton Business School, escritor de livros como “Os Originais” que se tornaram verdadeiros bestsellers, reserva períodos de tempo que duram de dois a quatro dias, uma a duas vezes por mês para desenvolver as suas ideias e realizar a sua investigação sem qualquer interrupção. Para isso, coloca respostas automáticas ao email e desconecta-se digitalmente do mundo.
Todos experimentamos períodos na vida em que necessitamos de um encontro sério com o nosso interior. A única coisa que Jesus tinha para interagir consigo próprio no período do deserto era o mesmo que Lincoln, Jung e Grant possuem, cada um no seu contexto, os seus pensamentos.
O que está em jogo na quaresma é um sério exame de consciência da nossa união com Deus, da qual emerge a força para realizar a vocação a que Ele nos chamou, ou mesmo descobri-la no meio deste mundo hiper-conectado onde, dificilmente, conseguimos espaço e tempo para ir ao encontro de Deus através dos pensamentos que ocorrem no nosso interior.
A raiz dos excessos
A aridez que sentimos diante da adversidade da vida constrói, gradualmente, um deserto interior. Da falta de vida que existe num deserto provêm as palavras negativas, o descontentamento, a raiva e o pessimismo que o Papa nos convida a jejuar pronunciando palavras bondosas, gratidão, mansidão e paciência, esperança e optimismo. Porém, não seria melhor mesmo passar do jejum à erradicação total dos aspectos que afectam negativamente a nossa união com Deus, incluindo a que ocorre através dos outros?
O melhor modo de erradicar algo é arrancá-lo pela raiz, logo, qual a raiz das palavras negativas, descontentamento, raiva e pessimismo? Sem os períodos em que nos encontramos junto com os nossos pensamentos, não é fácil, ou será mesmo impossível chegar a essa raiz. Daí que uma das grandes dificuldades do nosso tempo seja criar os espaços adequados para isso.
Quando penso na escolha de Jesus em ir para um deserto, penso que o fez para minimizar as distracções e vicissitudes do quotidiano que diminuiam a possibilidade de se concentrar ao máximo na Sua união com o Pai. Por outro lado, a Sua escolha é também fruto de uma inspiração do Espírito Santo, como escreve a Escritura. Ora, isso significa que estava atento à Sua Voz, uma Voz que fala através de sinais, mas também no nosso interior.
Porém, vivemos hoje uma dificuldade cultural grande que influencia muito a escuta daquela Voz Interior que nos inspira e penso que seja essa a raiz dos excessos que nos levam à negatividade em que vivemos: a deprivação de solidão interior.
Solidão interior
Em primeiro lugar, é importante perceber que a solidão interior não é um fechar-se sobre si mesmo, mas um encontro com o nosso interior. Um interior que vive de pensamentos, sentimentos e sonhos, livre das intromissões de outras mentes que pretendem distrair-nos.
O jejum quaresmal existe para nos ajudar no exame de consciência dos excessos que nos impedem de ter uma união maior com Deus. Se pensarmos bem, existe um excesso cultural que vivemos actualmente e que passa despercebido.
O excesso de conectividade.
Parece ser um contrasenso quando pensamos em como nos descobrimos cada vez mais e melhor como seres relacionais. Não é a conectividade que temos entre nós, indepentemente de onde quer que estejamos, uma coisa boa? Claro que sim. O problema não é a conectividade, mas o excesso que não volta as pessoas para si próprias, mas – curiosamente – as isola do mundo à sua volta.
No início de dezembro do ano passado, um jovem de 22 anos morre improvisamente ao ser atropelado por um comboio na linha de Oeiras por estar a ouvir música com os seus auscultadores, não se apercebendo da chegada do comboio. Para além dos ouvidos temos outros sentidos, como a visão de um comboio que se aproxima, o tacto para sentir a brisa que normalmente produz, e o seu cheiro típico, mas este caso triste mostra como é possível um tal isolamento através do excesso de conectividade de uma vida digital activa. Infelizmente, este não é caso único.
O que o período de deserto vivido por Jesus nos ensina de universal é esta necessidade profundamente humana e espiritual que temos, regularmente, de nos encontrarmos com o nosso interior. Algo que não é fácil porque muitos têm medo da verdade que poderão encontrar quando se encontram com os seus pensamentos e emoções. Daí que troquem o deserto da concentração pela ilha da distracção.
Desertos contemporâneos
O contexto social e cultural que permitiu Jesus fazer a experiência do deserto para encontrar uma união forte com o Pai não existe hoje. Construir casas numa floresta como Jung não está ao nosso alcance, e encontrar uma casa de campo para reflectir pode ser impraticável com os ritmos familiares que a maior parte de nós vive. O isolamento digital de Adam Grant também não é compatível com a vida da maior parte das pessoas. Daí que jejuar do excesso de conectividade para realizarmos um encontro sério e profundo com os nossos pensamentos, e fazermos desta solidão interior uma experiência transformativa de maior união com Deus seja um grande desafio. É aquele passo inspirado na experiência de Jesus no deserto e que o Papa Francisco refere e explica dizendo,
”a «quaresma» do Filho de Deus consistiu em entrar no deserto da criação para fazê-la voltar a ser aquele jardim da comunhão com Deus” (Papa Francisco)
Gostaria de partilhar três sugestões simples a partir da minha experiência pessoal que pretendem estimular a criatividade pessoal de cada leitor na descoberta de como converter os desertos do isolamento em jardins da comunhão no mundo actual.
Dar sentido aos momentos de tédio
O tédio é uma constante da vida quotidiana. Esperamos em filas de trânsito, de supermercado, de repatições públicas, pelos transportes, etc., que nos obrigam a experimentar o tédio. O aborrecimento experimentado em momentos de tédio não é mais do que a resistência que sentimos em estarmos junto com os nossos pensamentos.
Como isso não é fácil, sugiro um primeiro passo. De cada vez que sentires tédio, diz em voz alta palavras positivas se tiveres privacidade para isso, ou interiormente, caso contrário. Por exemplo, abraço, sorriso, alegria, paz, acordo, conforto, bem, vitória, descanso, tranquilidade, suavidade, …
Retomar actividades analógicas
Pensemos naquilo que fazíamos antes da era digital. Seguramente que haviam muitas actividades analógicas que deram lugar a outras actividades digitais. No meu caso foi a redescoberta por tocar guitarra clássica que aprendi quando era mais novo e que passei a tocar menos. E, depois, a construção de puzzles, que são dos poucos jogos onde todos podem contribuir e divertir, sem competir.
Caminhar pela natureza
Wendell Berry é um escritor americano e activista ambiental que afirma,
”Enquanto caminho, sou sempre lembrado da lenta, paciente construção do solo nos bosques. E sou lembrado dos eventos e companheiros da minha vida – pois, as minhas caminhadas, depois de tanto tempo, são eventos culturais.” (Wendell Berry)
Há algum tempo que tenho experimentado as caminhadas como momentos em que posso estar junto com os meus pensamentos. Por outro lado, são também uma oportunidade de contemplar a natureza, qual criação de Deus que não só restaura a nossa atenção, como através da qual podemos experimentar, de modo particular, a presença do Criador. No final, talvez descubramos que o encontro com o nosso interior acaba por ser um encontro com Deus-dentro.