Desarmamento é o único caminho

Adriano Moreira fala do espectro de uma nova Guerra Fria e subscreve alertas de Bento XVI na Mensagem para o Dia Mundial da Paz Apresentada a mensagem de Bento XVI para o Dia Mundial da Paz 2008, Adriano Moreira defende com o Papa um desarmamento geral e controlado, em especial no campo nuclear. AGÊNCIA ECCLESIA – Como vê a preocupação dos Papas de que a paz seja uma questão de todos e abrangente? Adriano Moreira (AM) – Em primeiro lugar, temos de lembrar a grande tradição dos projectistas da paz europeus, desde a Idade Média, é preenchida por teólogos juristas que se preocupam com esse problema, sobretudo para pacificar a própria Europa. Essa grande tradição tem origem cristã. O problema passou a ter maiores desafios depois da Guerra de 1939-1945, uma espécie de guerra civil da Cristandade, como tinha sido a de 1914-1918, porque ninguém atacou a Europa. O passivo dessa tremenda guerra não tinha precedentes, devemos contabilizar 50 milhões de mortos num momento em que as armas disponíveis anunciavam a capacidade de os próprios soberanos destruírem a humanidade. Tudo isso chamou à intervenção de muitos responsáveis de valores e não podemos deixar de reconhecer que a intervenção dos Pontífices neste espaço Ocidental foi fundamental. Parece-me que a presença de Paulo VI nas próprias Nações Unidas trouxe o conceito de que o desenvolvimento é o novo nome da paz. A partir daí, as intervenções têm sido constantes e valiosas, porque um grande número de países escuta a voz dos Pontífices. Essa longa contribuição não pode ser ignorada, mesmo pelos laicos, quando eles defendem a importância do respeito pelo direito internacional. AE – Essas intervenções continuam actuais? AM – Penso que a época iniciada com a II Guerra Mundial é crucial, todas as intervenções são fundamentais para responder a uma formulação que eu considero extremamente limitada do objectivo do desenvolvimento, o conceito da sociedade e do saber. É necessário acrescentar a sabedoria, os valores não podem estar ausentes e aí a pregação dos Pontífices tem sido central. AE – Na sua mensagem, Bento XVI apela à desmilitarização e ao desarmamento, sobretudo no campo do nuclear. AM – Penso que esse é um dos temas fundamentais e chamo a atenção para o seguinte: antes das armas nucleares, é necessário proibir o comércio das armas ligeiras. Se repararmos, os documentários que chegam das várias calamidades do que se chamava o terceiro mundo, não via um soldado que não via empunhasse uma arma moderna. Elas são feitas e exportadas pelos países altamente desenvolvidos e a nossa responsabilidade, a esse respeito, é enorme. Temos motivos para pensar no perigo que representa a multiplicação e dispersão das armas nucleares, mas é bom começar pelas armas ligeiras. Quanto às armas nucleares, há uma questão que também merecem reflexão ética: elas só puderam desenvolver-se pelo comércio, legal ou ilegal, da maneira de as saber fazer. Isso tem levado, curiosamente, a falar no “eixo do mal”, com intervenções calamitosas no Iraque, e à afirmação de que há países confiáveis para ter a arma atómica e outros não. Eu não conheço nenhum país confiável: o próprio país líder, a superpotência, é o único país que já a usou. Isso aponta para um único remédio, o desarmamento geral e controlado. Se isso não acontecer, considero que não é viável continuar com intervenções no “eixo do mal”, não há esforço possível de sustentação. É muito preocupante que o modelo mais suportável que aparece à vista seja o regresso à Guerra Fria, ou seja, o medo recíproco. AE – E é possível chegar a essa meta? AM – Há um fenómeno importante que se tem desenvolvido, que é a insistência da opinião pública mundial. É possível que essa força venha a introduzir razoabilidade no exercício do poder, porque o risco e o desperdício de recursos são tão grandes que podemos voltar à situação em que vivemos durante 50 anos. AE – Como encarar a utilização do nuclear como recurso energético? AM – Isso, realmente, tem vantagens e riscos, mas não pode ser contrariado. Temos de ter uma filosofia mais razoável na utilização de energias não-renováveis, com todos os recursos ao nosso alcance, dando liberdade às capacidades científicas e técnicas de renovar fontes de energia. AE – Que significado pode ter o crescente fenómeno da criminalidade urbana? AM – Nós estávamos acostumados a ter “sociedades habituais”, que na sua forma mais perfeita eram sociedades nacionais, com um tecido cultural que tornava a vida contratual. Esse modelo de sociedades, sobretudo no Ocidente, está a ser alterado muito rapidamente, com um progresso da ciência e da técnica sem precedentes num predomínio de valores económicos, uma espécie de “teologia de mercado”. A desregulação completa das migrações levou a uma recomposição dos povos, com sociedades multiculturais onde há erros tremendos: as migrações determinadas por motivos económicos, no exercício de um direito natural, foram recebidas com critério empresarial, mas as pessoas não regressam quando não há trabalho. Acabámos por ficar semeados de colónias interiores e o tal tecido cultural em que assenta a vida habitual esteja seriamente ameaçado. Os Estados começam a ser, em larga medida, organizações que não se mostram capazes de responder às novas necessidades. Mesmo do ponto de vista internacional, acontece que os centros de decisão não estão previstos em nenhum tratado, como é o caso do G8. AE – Estaremos perante novas formas de colonização? AM – Eu diria que a luta pelas hegemonias substitui o método da colonização. Durante todo o séc. XIX, o discurso dos governos das democracias estabilizadas da frente atlântica evocava valores, justificando a necessidade de ir buscar matérias-primas e mercado para os produtos acabados. O desaparecimento do modelo colonizador, nesse aspecto formal, feito ao abrigo da política das Nalões Unidas, deu lugar a uma luta de hegemonias que está em curso. A África é um exemplo claríssimo, com a chegada da China ou a presença dos EUA. Esta luta nem sempre respeita a tal igual dignidade dos povos e temos consequências nalguns locais que não satisfazem o animado e promissor conceito de alguns economistas de que o desenvolvimento técnico e científico provocaria uma destruição criativa. Há muitos povos em que a segunda parte da profecia não se tem verificado. AE – A exploração unilateral dos recursos energéticos está a fazer aumentar o fosso entre ricos e pobres? AM – Há uma situação que era caricaturada no fim da Guerra: aos povos pobres era uma ameaça ter petróleo. Porque a tal luta pelas hegemonias aparece imediatamente… E isso não vai parar, sobretudo porque nós hoje temos muita consciência de que elas, as energias, não são renováveis. E é necessário encontrar uma solução que as substitua. Enquanto elas tendem para ser mais raras, mais esgotadas, sem que ainda haja mecanismos suficientes de substituição, a competição vai ser muito mais severa e os povos mais fracos vão sentir mais angústias por causa do desenvolvimento dessa luta por supremacias. AE – Bento XVI fala também na necessidade de escolher a via do diálogo para protecção e gestão a terra como a nossa “casa comum”… AM – A ideia da casa comum é uma ideia nobilíssima e tem vários corolários: em primeiro lugar é responsabilidade de todas as culturas salvaguardar o planeta; por outro lado, há um direito natural – que é o mais importante depois do direito à vida – que é o direito de estar, de andar, de ir de um lado para o outro. Quando este direito natural se transforma na necessidade de multidões, nós assistimos a esta desregularão das migrações e a um noticiário angustiante, porque elas querem exercer esse seu direito natural. Isto implica a existência de uma nova ordem mundial. E a minha impressão é que estamos longe disso, o que aumentará o número de conflitos. Nós na Europa, arautos da paz e da promoção dos diálogos e dos valores, não conseguimos estabelecer a paz. Temos seriíssimos conflitos que talvez se possam agravar! Esse é certamente o desafio dos desafios no mundo. A situação neste momento é de anarquia mundial. Como sou optimista, digo anarquia madura na esperança de que para pior não vá… Mas de facto, reorganizar a governança mundial é a urgência desta geração. AE – As organizações internacionais fracassaram? AD – Não todas. Primeiro, defendo muito as Nações Unidas, porque é o lugar onde todos falam com todos. Por isso devem ser preservadas. No entanto, na parte da paz e da segurança, o Conselho de Segurança foi substituído pelos Pactos Militares, em que vivemos 50 anos. Se não fossem as organizações especializadas, onde não há direito de veto – a UNESCO, a FAO, o PNUD, OMS – o mundo não está grande coisa mas estaria muito pior. Nós devemos serviços inestimáveis às organizações especializadas. Há organizações não-governamentais – que são centenas e têm o bom o mau – que são notáveis pelos serviços prestados. Eu lembro mesmo uma de raiz portuguesa, a AMI, que é um exemplo do que pode fazer a sociedade civil voltada para o próximo. AE – De que forma poderemos chegar ao reconhecimento dos direitos humanos fundamentais, a partir do contributo da lei natural e de diferentes ordenamentos jurídicos? AD – Em primeiro, lugar temos já a Declaração Mundial dos Direitos do Homem. Ela foi escrita por Ocidentais e, quando as novas áreas culturais chegaram a ter voz própria, fizeram leituras que não são coincidentes com a tradição Ocidental. De qualquer modo, é um património termos chegado a essa definição. Infelizmente, essas Declarações encontram sempre uma grande dificuldade: os interesses. Eu recordaria, por exemplo, a Declaração de Filadélfia, por ser a primeira a ter projecção internacional, que diz que todos os homens nascem livres e iguais e com igual direito à felicidade… mas os índios, mas escravos não, mas as mulheres não, mas os trabalhadores não! Uma série de “nãos” que deram origem a combates que continuam para que os excluídos também possam ser daqueles que “têm direito à felicidade”. Por outro lado, as organizações políticas começam normalmente pela tomada do poder, e depois levam tempo a dividi-lo em legislativo, executivo e judicial. Neste momento – nesta tal anarquia mundial – há uma nota de esperança: a criação do Tribunal Penal Internacional. É a primeira vez que a organização da governança começa pela organização do poder judicial. É esperançoso! Mas as grandes potências, incluindo os EUA, não assinaram o estatuto. A resistência em passar do modelo observante para o modelo observado, continua! AE – O tema para a Mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz é “Família Humana: Comunidade de Paz”. Que protagonismo atribuir à família na construção da paz? AM – A Declaração Universal da ONU declara, julgo pela primeira vez, a família como célula base da sociedade e que tem direito à protecção. Todos assinaram, mas têm concepções de família diferenciada: os que acham que a família é sacramentada, um contracto, um troço no caminho… Mas todos assinaram. Diante das alterações que estamos a sofrer – designadamente na definição do Estado soberano, na definição da sociedade civil nacional que está a ser plural e transfronteiriça – diria que a célula base avulta de importância! Acho, por isso, que esse apelo é fundamental, sobretudo para a construção da paz. Considero que a família é o fórum principal de ensino na área dos valores. AE – Numa sociedade marcada pelo conhecimento, podemos alcançar a sabedoria? AM – Espero que não seja uma tradição universitária esquecida. Depois, a valorização do diálogo é fundamental, nomeadamente nas Nações Unidas. Também não é despiciendo ter alguma fé na santidade na política. E temos exemplos, nem todos cristãos: Gandhi, Mandela, Ana Arendt, a pregar que o diálogo e a verdade são as únicas garantias da paz… Recordo também S. Tomás Moro, proclamado por João Paulo II patrono de parlamentares e governantes, que tinha experiência do poder, porque foi chanceler de Inglaterra. Imagino que, não como santo mas chanceler, deixou-nos o legado de que se Deus não nos reservar mais do que justiça ninguém se salva. (Entrevista a emitir no Programa Ecclesia do dia 1 de Janeiro de 2008, às 18h30 na RTP2) Mensagem de Bento XVI para a celebração do Dia Mundial da Paz • Família Humana, Comunidade de Paz

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