Testemunho do Pe. José Antunes da Silva sobre as peregrinações a Santiago de Compostela A tradição, mais ou menos lendária, diz que São Tiago anunciou o Evangelho na Península Ibérica. Regressado a Jerusalém, aí foi martirizado. Depois, dois dos seus discípulos teriam trasladado o seu corpo numa barca para ser sepultado na região onde evangelizara. Atravessaram o mar Mediterrâneo, entraram no oceano Atlântico e aportaram na costa da actual Galiza. Vencidos alguns obstáculos, sepultaram o corpo num bosque da região. Durante a ocupação muçulmana perdeu-se o rasto do local onde se encontrava o túmulo do Apóstolo. No século IX deu-se o “descobrimento” do túmulo e começou a erguer-se a catedral. Em breve, Santiago de Compostela transformou-se num dos lugares de peregrinação mais importantes do cristianismo, a par de Jerusalém e de Roma. De toda a Europa começaram a afluir peregrinos dando origem a numerosos caminhos. O itinerário mais famoso e conhecido é o chamado caminho francês que atravessa todo o Norte de Espanha desde os Pirinéus, onde convergiam quatro grandes rotas de peregrinos provenientes de todos os países da Europa. Desde cedo, também os cristãos de Portugal começaram a peregrinar ao túmulo do Apóstolo Tiago. Atraídos pela sacralidade do lugar onde – segundo a tradição – repousam os restos mortais do Apóstolo São Tiago, dirigiam-se para Compostela pelos mais variados motivos: pagar promessas, cumprir penitências ou mera curiosidade. O contínuo fluxo de peregrinos – sobretudo na Idade Média – foi traçando caminhos que, dirigindo-se para Norte, conduziam à Galiza. Tal como a corrente de um rio a caminho da foz vai engrossando com a água dos seus afluentes, também os caminhos que tinham origem em diversos pontos do território português iam convergindo uns nos outros até desembocarem em duas grandes rotas ao entrar na Galiza: uma pelo litoral, a partir de Valença-Tui e outra pelo interior a partir de Chaves. O caminho que, vindo do Sul, segue pelo litoral é conhecido como o caminho português. Ao longo dos séculos, este caminho foi utilizado não só por gente simples e anónima, mas também por reis e por santos, nomeadamente o rei D. Sancho II, a rainha Santa Isabel e o rei D. Manuel I. Em 1594, o padre italiano Juan Batista Confalonieri viajou de Lisboa a Santiago, acompanhando Fabio de Montalto, Patriarca de Jerusalém, deixando-nos um relato interessante e pormenorizado do caminho português, cheio de comentários curiosos sobre os locais por onde ia passando. Confalonieri e companheiros partiram de Lisboa em direcção a Santarém e, depois, seguiram por Golegã, Tomar, Coimbra, Águeda, Grijó, Porto, Vila do Conde, Rates, Barcelos, Ponte de Lima e Valença. Entraram na Galiza por Tui e, passando por Redondela, Pontevedra e Padrón, chegaram a Santiago. Hoje o caminho português segue basicamente o mesmo percurso, apesar de já não ser possível percorrer o antigo caminho medieval na sua totalidade porque a construção de estradas e de habitações destruiu alguns troços. Para além deste percurso existem outros em território português que foram utilizados no passado e que, também hoje o são, porque o caminho começa quase sempre no local onde o peregrino reside. No Porto alguns peregrinos optavam por seguir ao longo da costa por Vila do Conde e Viana do Castelo, atravessando o rio Minho em Caminha, Cerveira ou Valença. Outros seguiam por Braga. Aqui, alguns dirigiam-se para Ponte de Lima onde retomavam o caminho principal; outros atravessavam a fronteira do Gerês, na Portela do Homem e seguiam para Ourense. Os peregrinos oriundos do interior de Portugal tinham basicamente duas opções: ou se aproximavam do litoral tomando o caminho que vinha do Sul ou continuavam pelo interior cruzando a fronteira nas zonas de Chaves ou de Bragança até entroncar no caminho do Sudeste, também conhecido como a Via da Prata e, passando por Verin e Ourense, chegavam a Santiago. Havia ainda outros caminhos com alguma importância, nomeadamente saindo de Braga em direcção a Ponte da Barca e entrando na Galiza por Monção. Todavia, todos os caminhos do litoral iam confluindo num único caminho que, a partir da zona de Tui, utiliza um único trajecto e é conhecido como o caminho português. Das margens do rio Minho em Tui até à catedral de Santiago são 115 quilómetros, pelo caminho a pé. Está bem sinalizado, com as famosas amarelas e, no território galego, servido por um excelente conjunto de albergues de peregrinos. O caminho português está intimamente ligado à tradição jacobeia por dois episódios. Um dos símbolos do caminho de Santiago é a concha ou vieira. Para além da sua utilidade prática (podia servir para beber água das fontes), as conchas estão associadas a um episódio lendário. Diz a lenda que um cavaleiro das Terras da Maia viu ao largo da costa a barca que transportava o corpo do Apóstolo Tiago. Num ápice, o seu cavalo precipitou-se pelo mar adentro em direcção à barca. Pouco depois, ambos emergiram das águas do Atlântico e regressaram a terra, sãos e salvos, cobertos de conchas. O outro episódio está relacionado com a cidade de Padrón, já no troço final do caminho português. Reza a tradição que foi ali, nas margens do rio Sar, que os discípulos de São Tiago amarraram o barco, que trazia o seu corpo, numa pequena coluna de pedra. O nome da cidade vem dessa pedra à qual foi amarrada a barca do Apóstolo. A entrada tradicional dos peregrinos do caminho português na velha urbe compostelana faz-se pela Rua do Franco, em direcção à Praça do Obradoiro. Tradicionalmente, os peregrinos provindos do caminho português e da Via da Prata entravam na catedral pela porta da Praça das Praterias. Os que percorriam os caminhos do norte, inglês e francês, faziam a entrada pela Porta do Paraíso, na Praça Acibecheria. Todavia, nos Anos Santos – como acontece este ano – todos os caminhos confluem na Praça da Quintana e a entrada na catedral faz-se através da Porta Santa ou do Perdão. Após o período áureo das peregrinações medievais, o caminho de Santiago foi perdendo importância, ao ponto de quase desaparecerem os peregrinos a pé. A viragem deu-se a partir dos anos 80 do século XX. Segundo dados da catedral de Santiago, em 1986 fizeram a peregrinação a pé 4.918 pessoas. Em 2003, o número subiu para 293.146. Destes, cerca de 16 mil utilizaram o caminho português. Actualmente, muitos cristãos redes-cobriram o valor da peregrinação a pé e o seu significado como metáfora para a caminhada espiritual. Por seu lado, a sociedade civil descobriu o caminho de Santiago como itinerário cultural. Aos primeiros cabe divulgar o sentido cristão do caminho; a todos compete preservar e proteger uma rede de percursos que são património cultural da humanidade. José Antunes da Silva, SVD