(..) sinto e entendo que os tempos que protagonizamos pedem menos palavras, sobretudo as ditas, e economia de inteligência às que ainda forem proferidas.
Há momentos na nossa vida em que vemos mais longe de olhos fechados! A dor funda da perda, a raiva das amarras, o sabor da vitória, o pudor da conquista, o turbilhão da emoção, a quietude de uma paz por um segundo inabalável, a dúvida, alguma certeza, de novo a dúvida, mais alguma certeza…
Há momentos na nossa vida em que vemos mais longe de olhos fechados! O calor de um abraço, a alegria do encontro, o medo da solidão, o anonimato da multidão, a despedida, sobretudo aquela sem palavra definitiva e última…
Há momentos na nossa vida em que vemos mais longe de olhos fechados!
A memória de um gesto, que nos faz sorrir, a lembrança de outro gesto, que nos turva o semblante, a entrega insana pelos filhos, o filho que se perdeu, o irmão que voltou, a sombra do dia em que nos renegamos a nós mesmos, sem galo a anunciar a profecia, a aurora do outro dia em que nos voltamos a encontrar.
Há momentos na nossa vida em que vemos mais longe de olhos fechados!
Aqueles segundos de acção de graças, aquelas lágrimas que nos limparam a alma, aquele toque que nos aqueceu o coração. A verdade nua do que somos e do que aspiramos ser condensada numa prece, no esboço de um gesto.
Há quem vislumbre nos dias que testemunhamos uma radical transformação civilizacional. Talvez seja pedir muito a quem anda há demasiado tempo a lamber as feridas de uma geração falhada. Pode ser também que haja aí motivo para alarido. Sinceramente não sei. Quem vier a seguir verá se assim foi, ou não. Pela minha parte, sinto e entendo que os tempos que protagonizamos pedem menos palavras, sobretudo as ditas, e economia de inteligência às que ainda forem proferidas. O hoje que vivemos pede sobretudo mais compaixão e demorado silêncio.
Há dor – num tempo de tantas dores – que se partilha com mais afinco na palma das mãos e de lábios cerrados. Sem que haja aí novidade. A cada página do Evangelho vemos apontado o caminho: acolher cada um na sua vida concreta, nas suas misérias e errâncias, também na sua bondade e capacidade de sonho; confrontá-lo com uma opção de amor; e, bem mais difícil ainda, respeitá-lo na sua liberdade de escolha. Não se trata de militância, como alguns pretendem, mas de convicção interior, suficientemente luminosa para dispensar as palavras e encarnada o bastante para irradiar vínculos de comunhão. Afinal, os trilhos da eternidade desenham-se no barro que somos e de que fazemos a única cruz de todos os dias, mesmo depois do derradeiro ocaso.
Há tanto para ver de olhos fechados.
João Soalheiro
Director do Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja