Santos Cabral, Diocese de Coimbra
Nos últimos dias, e uma vez mais, o nosso quotidiano foi invadido por uma notícia que transmite a forma como se negam valores fundamentais numa sociedade democrática.
Na verdade, por detrás da construção harmoniosa do Estado de Direito descrito na Constituição, em que tudo é pensado para defesa dos cidadãos, existe uma outra realidade semiclandestina onde a vida pública, amiúde, realmente se desenvolve. A verdadeira Administração não se desenrola, muitas vezes, em gabinetes transparentes, mas em lugares mais escondidos, sem limpidez, seja na discrição dos grandes escritórios de advogados, seja em ambientes reservados.
Parte da classe política ocupa o Estado para, em primeiro lugar, a partir dele cumprir os seus objectivos e o programa com que se cativou o eleitorado. Mas, logo em seguida, ocorre, parcialmente, a “patrimonialização” do aparelho de Estado em função duma constelação de interesses particulares, ou seja, muitas vezes, consuma-se um desvio dos objectivos políticos mais nobres, passando para primeiro lugar a satisfação dos interesses particulares do partido governante; dos seus militantes e seguidores. Quando se chega a esse ponto é a própria estrutura do Estado de Direito que entra em crise e a democracia corre o risco de se dissolver.
A degradação da decisão política, nomeadamente com a submissão do interesse público a interesses privados, tem implícitas patologias óbvias, sendo a corrupção a mais visível. A corrupção é o desgoverno no seu estado puro.
Nega-se o interesse comum, e afrontam-se os cidadãos, quando aqueles que têm por missão servir, e não a de se servirem, transformam e tratam como bem próprio, aquilo que é pertença colectiva ou decidem em nome de todos, mas pretendendo, ilegitimamente, favorecer alguns.
O fenómeno da “patrimonialização” da coisa pública, e da captura do Estado por interesses privados, apresenta hoje a característica fundamental da sua globalidade e permanência. Subverte o regime democrático e, invadindo todos os sectores do Estado, perde a natureza de uma mera deriva conjuntural, assumindo-se como estrutural e característica do regime. É transversal às forças políticas e determinante nas relações entre o sector público e privado
Todas as áreas denominadas de risco-desde os grandes investimentos estruturais até ao negócio dos submarinos, passando pelos aviões, rodovias e ferrovias ou pontes até aos aeroportos; desde a comissão no grande negócio de aquisição de bens e serviços para o Estado até á desanexação da área situada em zona de reserva, passando pela alteração do PDM- apresentam-se como um universo do desgoverno que nos afecta.
O grau de anomia ética é, por vezes, de tal forma intenso que se transita dos grandes grupos económicos para o Governo e do Governo para os grandes grupos económicos numa confusão de interesses e papéis. Adjudicam-se contratos sem concurso e fazem-se concursos em que a informação não é igual para todos os concorrentes. As empresas públicas são muitas vezes “coutadas privadas” reservadas aos titulares do bloco central de interesses cujos lugares são repartidos de acordo com critérios pragmáticos.
A degradação da qualidade, e da ética, no comportamento de alguns decisores políticos tem, como contraponto, uma sociedade civil demasiadamente ausente e distante, niilista em termos de valores, e entretida no palco que lhe é oferecido na discussão das denominadas “questões fracturantes” que, muitas vezes, mais não são do que cortinas de fumo que ocultam questões bem mais complexas, e fundamentais, onde se joga o nosso destino colectivo.
Como afirma o Papa Francisco a corrupção revela uma conduta antissocial tão forte que mina a validade das relações e, portanto, os pilares sobre os quais se apoia uma sociedade: a coexistência entre as pessoas e a vocação para desenvolvê-la. A corrupção destrói tudo isso, substituindo o bem comum por um interesse particular que contamina toda a perspetiva geral.
No inicio deste ano de 2023 ficam os Votos de que a Ética não seja uma palavra vã no comportamento dos nossos governantes.
Santos Cabral, Presidente da Comissão Diocesana Justiça e Paz