Da condenação à defesa da liberdade religiosa

A liberdade religiosa significa, de forma sintética, o direito de não ser forçado nem impedido – por indivíduos, grupos ou Estado – de assumir e praticar a sua crença religiosa. Não se limita aos actos internos e privados de crença e culto, mas também aos externos e colectivos, não só de culto, mas também de apostolado e de projecção cultural, pressupondo o reconhecimento legal – às autoridades públicas compete definir os limites do exercício deste direito, tendo em vista unicamente a ordem pública. O reconhecimento desta liberdade foi-se fazendo a partir das ideias que eclodiram na Revolução Francesa e que, até pela falta de isenção com que eram proclamadas, suscitaram da parte da Igreja as mais severas críticas, nomeadamente, o Syllabus, de Pio IX, 1848 – já antes a liberdade religiosa tinha sido condenada por Gregório XVI na encíclica “Mirari vos” de 1832. Entre as teses condenadas, pelo Papa Pio IX (1846-1878) no Syllabus (anexo à encíclica “Quanta cura”), incluíam-se algumas como “é livre a qualquer um abraçar o professar aquela religião que ele, guiado pela luz da razão, julgar verdadeira” Na encíclica “Quanta cura” criticavam-se os que “não temem fomentar a opinião desastrosa para a Igreja Católica e a salvação das almas, denominada por Nosso Predecessor, de feliz memória, de ‘loucura’ (Mirari Vos) de que a ‘liberdade de consciência e de cultos é direito próprio e inalienável do indivíduo que há de proclamar-se nas leis e estabelecer-se em todas as sociedades constituídas”. O Papa Gregório XVI (1831-1846) escrevia na encíclica “Mirari Vos” que “outra causa que tem acarretado muitos dos males que afligem a Igreja é o indiferentismo, ou seja, aquela perversa teoria espalhada por toda a parte, graças aos enganos dos ímpios e que ensina poder-se conseguir a vida eterna em qualquer religião, contanto que se amolde à norma do recto e honesto”. “Desta fonte lodosa do indiferentismo promana aquela sentença absurda e errónea, digo melhor disparate, que afirma e que defende a liberdade de consciência. Esse erro corrupto que abre alas, escudado na imoderada liberdade de opiniões que, para confusão das coisas sagradas e civis, se estende por toda parte, chegando a imprudência de alguém asseverar que dela resulta grande proveito para a causa da religião”, acrescentava. Importa perceber que nestes textos não se condenava a liberdade religiosa, mas uma certa concepção filosófica da liberdade religiosa que então dominava, a qual comportava o relativismo, o sincretismo ou mesmo a indiferença em matéria religiosa, com uma equiparação em essência entre a verdade e o erro. Revolução conciliar Só a partir de Leão XIII, a Igreja se abriu às exigências da liberdade religiosa, com a qual está intimamente relacionada a laicidade do Estado, assumindo-as plenamente no Concílio Vaticano II. A declaração conciliar “Dignitatis humanae” (DH) considera a liberdade religiosa como um direito natural, fundado na própria dignidade da pessoa humana, que se define como direito a não estar submetidos a coerções externas em matéria religiosa. Declara, além disso que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a Palavra Revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer (DH, 2). “Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana e, cada vez em maior número, reivindicam a capacidade de agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coacção mas levados pela consciência do dever”, lembravam os padres conciliares. A DH declarava mesmo que “é uma injustiça contra a pessoa humana e contra a própria ordem estabelecida por Deus, negar ao homem o livre exercício da religião na sociedade, uma vez salvaguardada a justa ordem pública”. Os participantes no Concílio quiseram deixar claro que a liberdade religiosa tem as suas raízes na Revelação, está de acordo com a doutrina teológica sobre a fé e está de acordo com o comportamento de Cristo e dos Apóstolos. “Visto que a liberdade religiosa, que os homens exigem no exercício do seu dever de prestar culto a Deus, diz respeito à imunidade de coacção na sociedade civil, em nada afecta a doutrina católica tradicional acerca do dever moral que os homens e as sociedades têm para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo”, explicava-se (DH, 1). Ensinamento actual O Compêndio da Doutrina Social da Igreja, lançado em 2004 pelo Conselho Pontifício Justiça e Paz, fala da liberdade religiosa como um “direito humano fundamental”, lembrando que o Concílio Vaticano II “empenhou a Igreja Católica na promoção da liberdade religiosa”. Retomando várias afirmações da “Dignitiatis Humanae”, este “catecismo social” explica que “a dignidade da pessoa e a própria natureza da busca de Deus exigem que todos os homens gozem de imunidade de toda a coacção no campo religioso”. “A sociedade e o Estado não devem forçar uma pessoa a agir contra a sua consciência, nem impedi-la de proceder de acordo com ela”, pode ler-se no número 421. No Compêndio são recordados os “justos limites” do exercício da liberdade religiosa, retomando o ensinamento mais recente da Igreja, segundo o qual esses mesmos limites “devem ser determinados para cada situação com prudência política, segundo as exigências do bem comum”. O catecismo social cita a primeira exortação apostólica de João Paulo II, “Catechesi Tradendae”, para lembrar que o direito à liberdade religiosa “é violado por numerosos Estados, a ponto de o dar, mandar ministrar a catequese, ou o recebê-la, ser tido por delito passível de sanções”. O Catecismo da Igreja Católica, no seu número 2107, retoma ainda os ensinamentos da DH para falar das relações entre os Estados e as organizações religiosas: “Se, em razão das circunstâncias particulares dos diferentes povos, se atribui a determinado grupo religioso um reconhecimento civil especial na ordem jurídica, é necessário que, ao mesmo tempo, se reconheça e assegure a todos os cidadãos e comunidades religiosas o direito à liberdade em matéria religiosa”. João Paulo II volta a ser citado pelo Compêndio da Doutrina Social da Igreja, no número 423, que retoma a sua mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1999. Nesta, o Papa polaco referia que a liberdade religiosa é o “coração dos direitos humanos”, dado que “a religião exprime as aspirações mais profundas da pessoa humana, determina a sua visão do mundo, orienta o seu relacionamento com os outros: fundamentalmente oferece a resposta à questão do verdadeiro significado da existência, tanto no âmbito pessoal como social”. “Ninguém pode ser obrigado a aceitar à força uma determinada religião, quaisquer que sejam as circunstâncias ou as razões”, apontava.

Partilhar:
plugins premium WordPress
Scroll to Top