Bispo de Viseu pronucia-se sobre pastoral vocacional e pedagogia vocacional “Da alegria de ser chamado à coragem de chamar” é o lema do plano diocesano de pastoral vocacional que coloca a temática dentro do lema para o ano pastoral: “Servidores da alegria do Evangelho”. Na carta pastoral referi-me à necessidade de “uma verdadeira e própria pedagogia vocacional”. Hoje quero explicitar esta pedagogia, o seu alcance e as suas exigências para a comunidade cristã e para os animadores vocacionais, tendo presente uma questão fundamental: o que é que se deve por no centro da pastoral vocacional para abrir a mente e o coração dos mais jovens a um apelo de Deus, que os atraia de modo a colocá-lo no horizonte das suas opções? 1. Novo contexto vocacional A crise das vocações ao sacerdócio ou à vida religiosa não pode ser compreendida de um modo isolado do contexto cultural da nossa época nem do contexto da vivência da fé nas nossas comunidades. É antes de mais uma crise cultural. Hoje sente-se a falta de uma “cultura vocacional” que se reflecte em vários âmbitos: crise da vocação ao matrimónio, à vida política, à vida sindical, à vida associativa. Isto é derivado da cultura reinante da incerteza e da confusão, causada pelo relativismo e pelo vazio de ideais, de valores, de referências e modelos fortes, que desemboca por sua vez na cultura da indecisão. Os jovens têm temor, receio e medo de tomar opções e assumir compromissos fortes, exigentes e duradoiros. Esta crise cultural repercute-se também na Igreja. Em tempos de cristandade, a vocação, tal como a fé, despertava e transmitia-se como que por osmose ou contágio do ambiente cristão das famílias e da figura e do estatuto social do padre. Hoje, num mundo em constante mudança e pluralista, a vocação, tal como a fé, requer interpelação clara por parte da comunidade cristã e escolha, opção consciente dos destinatários. Acontece porém que nas nossas comunidades cristãs reina uma amnésia vocacional. A maior parte dos nossos cristãos pensa que isso da vocação é assunto do bispo e dos padres. A crise vocacional é, em última análise, crise de interpretação banal da fé, privada de toda a beleza, frescura, encanto, paixão, alegria e entusiasmo por Cristo e pelo evangelho, privada do sentido de responsabilidade e de doação a Deus e aos outros. Entre os cristãos há a tendência a ser mais fruidores e consumidores de serviços religiosos do que a ser chamados e enviados por Jesus Cristo. Ora o crente não compreende nada da fé, se não a percebe e vive como apelo, chamamento constante ao qual dá resposta. Cada um é chamado a viver a fé como vocação segundo os dons, qualidades, capacidades e carismas com que Deus o agraciou e os ministérios a que o chama. Isto diz respeito a todos os cristãos. Daqui resulta que a pastoral vocacional não é um aspecto isolado, sectorial. Está vinculada à pastoral global da comunidade cristã e, particularmente, à pastoral juvenil e familiar. Trata-se de uma pastoral transversal e refere-se a todas as vocações. 2. Pedagogia vocacional Esta pastoral requer uma pedagogia própria, isto é, linhas pedagógicas em ordem á animação vocacional. 2.1.O âmbito existencial: a comunidade cristã normal deve ser por natureza, “casa e escola vocacional” que faz despertar e crescer, de modo normal, as vocações normais a partir da fé vivida e testemunhada como apelo! A vocação há-de ser apresentada não como um facto extraordinário, mas como o desabrochar normal de um caminho de fé: Que procuras? O que te move? Que anseios estão no interior do teu coração? Que sentido e que projecto queres dar á tua vida? Que esperas da vida? Vocações normais: a vida matrimonial, profissão, sacerdócio, ministérios, vida consagrada, voluntariado, empenho no social ou politico etc. A pastoral passa através de uma proposta vocacional comunitária e popular, não elitista. Cada um na comunidade (família, catequistas, padres…) tem um talento próprio a fazer frutificar na acção comunitária, para a preparação do terreno e para a sementeira de todas as vocações. Assim todos se sentem e mostram responsáveis pelo futuro da Igreja. 2.2 Os protagonistas: todo o adulto na fé sentirá a alegria de ser chamado e por sua vez de “chamar” também: com o testemunho de vida, a palavra, o acompanhamento, a interpelação directa… Mas, como num jogo em equipa, há que ter animadores vocacionais nas comunidades e na diocese. 2.3 O objectivo: formar, educar o sujeito vocacional para que viva conscientemente o chamamento pessoal como parte da sua fé, da sua relação com Deus, com o povo de Deus e com o mundo. A vocação de cada um é sempre vocação situada num contexto familiar, religioso, comunitário e social, como se pode ver no exemplo típico da vocação de Samuel. 2.4 Estratégia vocacional: os caminhos da pastoral vocacional são, antes de mais, os do crescimento da fé e dos seus dinamismos. Em concreto, requer-se: – a articulação dos dinamismos da fé; – propostas de itinerários vocacionais, ou seja, de mediações para a opção vocacional. 3. O animador vocacional Naturalmente, não esquecemos que a animação vocacional é, antes de mais, obra de Deus que trabalha o coração humano pela acção do Espírito Santo. Mas Deus trabalha com a nossa colaboração, em equipa connosco. O ser animador vocacional requer uma pedagogia própria. A pedagogia é antes de mais a própria pessoa que a põe em prática. Não bastam os princípios teóricos. O método é sobretudo a qualidade da sua vida. A pedagogia vocacional é pois, antes de mais, o nível da maturidade vocacional do animador. Nesta perspectiva propomos algumas qualidades ou características do animador vocacional. 3.1 Educador e formador Há hoje uma “orfandade educativa” que vai mais para além dos pais que se demitem da sua função educativa, das famílias desfeitas e dos pais separados. A crise vocacional é também crise de educadores. Há de facto muito mais instrução, mas menos educação. A educação é uma arte. Em síntese: – a arte de ajudar o jovem a trazer ao de cima, a tomar consciência da verdade de si mesmo: a conhecer-se e a conhecer as suas aspirações, os seus ideais, os seus medos e as suas resistências, as suas fragilidades e dependências; – a arte de propor um ideal de vida que a desenvolve e a torna digna de ser vivida. Este empenho deveria ser visível: – no tempo e nas energias dedicadas a este serviço; – na disponibilidade à escuta; – no acompanhamento espiritual compreensivo e também exigente; – na atenção particular a cada pessoa e não só ao grupo. 3.2 Propositivo e corajoso Quer dizer, o animador deverá ter consciência de que tem algo de belo e importante a comunicar e partilhar com os jovens. O que é verdadeiro, bom e belo deve ser testemunhado e narrado não só respeitando mas também “pro-vocando” a liberdade de quem escuta para que reconheça algo que pode tornar verdadeira, boa e bela a sua vida. Neste aspecto é prioritário o recurso a testemunhos significativos e belos. O primeiro testemunho dos padres e religiosos é pois a beleza do sacerdócio, da missão, da vida consagrada, da vida em comunidade, em tudo o que se vive, diz e faz… O animador deve ter consciência de possuir este tesouro. Daqui deriva a coragem e a criatividade de dar o primeiro passo, de passar à pedagogia da proposta, de chamar pelo nome como fazia Jesus, de experimentar estratégias educativas, mesmo quando não parecem dar resultados imediatos. Não desiste após a primeira recusa. Por vezes há timidez porque não se acredita no tesouro que se possui. E não é com certas manias juvenilistas que se provoca a liberdade dos jovens. Querem-nos ver próximos, mas diferentes! 3.3 Coerente e essencial A coerência é a fidelidade a si mesmo, à sua vocação, às convicções e aos valores, a Jesus Cristo e ao projecto de Deus que é o essencial. Por vezes entretemos os jovens com o secundário e o periférico que só serve para confundir. Hoje um jovem vive na confusão mais desorientadora e em contacto com a incoerência mais dissonante, a vários níveis e em muitas pessoas, a começar na própria família. Tem necessidade de coerência e de exemplos vivos desta virtude que deixam transparecer o essencial da vida e o que é fundamental para a sua vida e a sua felicidade. Isto implica passar da pedagogia dos valores à pedagogia dos modelos de vida. 3.4 Alegre, contente e credível O animador há-de ser testemunha de uma serenidade e alegria interiores que tornam credível aquele que chama e o chamamento que faz. A autenticidade do testemunho vive-se na frescura de motivações, no gosto de redescobrir, cada dia, motivos e sabores novos do próprio ministério ou da consagração. Li uma vez esta frase: “O padre deve ser como o peixe, isto é, fresco; quando não é fresco começa a cheirar mal”… Trata-se, naturalmente, da frescura espiritual! Esta autenticidade transparece e manifesta-se na capacidade de relação, na maturidade relacional: – a capacidade de estar no meio da gente; – de querer bem a todos e não só aos simpáticos; – de viver relações saudáveis, livres e libertadoras; – de estar contente com a sua escolha ou com o seu ser celibatário como dom total de si mesmo. O melhor modo de mostrar as próprias convicções é mostrar-se contente, alegre, sereno; só assim, o que foi chamado se torna também naquele que chama! 4. Estratégia vocacional 4.1 Articulação dos dinamismos da fé Se o modo normal do desabrochar e crescer da vocação é a partir da fé, há que articular todos os dinamismos que lhe são próprios: fé recebida, personalizada, professada, celebrada, rezada, estudada, partilhada, anunciada, provada na e pela vida. A opção vocacional é consequência da vitalidade destes dinamismos. E dentro destes dinamismos há que propor claramente a fé como coragem de escolher e alimentá-la com a vida sacramental. a)A fé como coragem de escolher, optar e decidir Trata-se de uma educação da pessoa na e para a fé que se traduz quotidianamente em opções de vida e de estilo de vida. A fé é geradora duma coragem capaz de fazer frente á cultura da incerteza e da indecisão. Para isso há que ir treinando os jovens, progressivamente, no seu itinerário de fé, com etapas ou momentos em que se tomam pequenas ou grandes decisões (v.g. profissão de fé, compromissos na vida pessoal ou familiar (estudo, horários, uso do tempo livre), na comunidade ou no voluntariado, boa acção do dia, oração etc). b)A vida sacramental “Se o Senhor não constrói a casa, em vão se afadigam os que nela trabalham”, diz o salmista. Os sacramentos são momentos fortes e contínuos em que o próprio Deus com a sua graça vai modelando o coração de cada um; em que se vai formando a consciência que torna o jovem capaz de sentir na sua consciência o Deus que chama; e em que também se vão tomando decisões. Na perspectiva vocacional há três sacramentos a valorizar: a confirmação, a eucaristia e a reconciliação. c)Os retiros São autênticos “kairoi”, momentos especiais de graça para que a fé seja personalizada, interiorizada e vivida como apelo, chamamento de Deus. 4.2 Itinerários vocacionais específicos Antes de mais, é necessário imprimir uma perspectiva vocacional aos demais itinerários de fé que existem nas comunidades como a catequese ou grupos de jovens. Não podemos esquecer que, de qualquer itinerário de fé, fazem parte os elementos essenciais da fé vivida: escuta da Palavra, celebração e oração, fraternidade e testemunho. Mas, para além disso, deverão ser oferecidos itinerários especificamente vocacionais que podem ser organizados de vários modos, embora com um ritmo regular. Sonho com um em particular, para jovens com preocupação de discernir a sua vocação. Teria a duração de um ano e um encontro de uma tarde uma vez por mês. Constaria de oração inicial, meditação vocacional segundo o método da lectio divina, uma hora de silêncio para interiorizar, trabalho de grupo em género de partilha e um trabalho para casa. Cada participante deveria ter um director espiritual com quem se encontraria uma vez por mês. Poderia funcionar a nível diocesano. Será viável? A isto acrescem as iniciativas extra-ordinárias como as vigílias vocacionais ou a semana das vocações etc. 4.3 Serviços de apoio e dinamização Sendo a pastoral vocacional algo que diz respeito a todo o povo de Deus, ás comunidades cristãs, todavia são necessários serviços de apoio e animação como o Secretariado Diocesano da Pastoral Vocacional. A sua função principal será a de ser animador dos animadores vocacionais com tudo o que isso implica, para criar uma cultura vocacional nas comunidades paroquiais. +António Marto, Bispo de Viseu