D. Manuel Madureira Dias

Era, a nossa festa. Os pobres contentam-se com o pouco que têm! O Natal era simples, como simples eram as condições de vida dos protagonistas que viviam naquelas paragens! Perdida no ermo do campo, e pendurada sobre o rio Douro, a aldeia onde vivi a minha infância, íngreme e de acessos difíceis, lavava os pés nas águas do grande rio que corria em direcção à já progressiva urbe do Porto, galgando os declives de um leito irregular, lá desde as bandas de Espanha. Para ir à sede do concelho, só havia transporte duas vezes por semana; para ir a Lamego, sede diocesana, não existia qualquer meio público de locomoção. Toda a vida de contactos se fazia, na direcção da cidade do Porto, através da «carreira» que passava, vinda de Cinfães, quatro dias na semana, uma vez por dia. Existia uma escola primária que nem todos frequentavam, por não ser obrigatório, e, se alguém quisesse estudar mais, teria de sair da terra, porque o liceu mais próximo era no Porto, embora existisse uma escola industrial a quarenta quilómetros, mas sem transporte para garantir as ligações necessárias à sua frequência. Na aldeia existia uma telefonia particular, alimentada a bateria, que, ao Domingo era escutada pelo povo que se aglomerava, para ouvir o programa cómico, ao tempo, «O Zequinha e a Lélé». Jornais diários eram recebidos dois, na loja do Sr. Miranda, onde os mais «cultos» iam saber das notícias do país e do mundo. Vivia-se, então, numa grande ansiedade por saber o que ia acontecendo lá para os lados da Europa central, uma vez que se vivia em plena Segunda Guerra Mundial. Não existiam estradas alcatroadas e algumas delas ficavam intransitáveis, após qualquer chuvada mais invernosa. E como era celebrado o Natal, por essas «terras do demo», escondidas nas faldas remotas da serra de Montemuro, quase isentas de tráfego automóvel, por inexistência de vias de ligação? Como podia ser, dentro destas e de muitas outras limitações de ordem sócio-económica. Vivia-se do trabalho do campo ou do exercício de algum ofício de magros rendimentos. Era o caso dos meus pais. No tempo da guerra e do pós-guerra, as coisas tornaram-se difíceis: os alimentos mais essenciais à subsistência ficaram racionados e reduzidos a um mínimo prescrito por senhas, através das quais se comprava a mercearia e a farinha para o pão. Quando essas quantias se tornavam insuficientes, era necessário recorrer ao «mercado negro», que se aproveitava da circunstância, para a especular nos custos do bem que se vendia e comprava. Com todos estes condicionamentos, se celebrava o Natal! Vivido com muita simplicidade, pobreza e isolamento do mundo mais evoluído. Mas vivia-se, com aquela poesia própria da quadra festiva. Nada tinha de especial, mas era uma grande data, apesar da modéstia que o envolvia. Do ponto de vista religioso era tão pobre como o presépio de Belém. Missa à meia-noite não existia, porque o Pároco vivia a alguns quilómetros de distância e não tinha transporte; além disso, no escuro da noite, numa aldeia dispersa e sem luz, não era possível andar pelos caminhos e veredas daqueles campos. A única realidade vivida festivamente, como Natal, era a Missa do próprio dia 25, solenizada por uma orquestra, formada por alguns instrumentistas da filarmónica da terra, que, para além de cantarem a Missa (em latim), cantavam e tocavam loas ao Menino Deus. Era, a nossa festa. Os pobres contentam-se com o pouco que têm! Em família, o mesmo ambiente sadio e simples. No meio das limitações existentes, sempre se ia economizando alguma coisa para celebrar aquele dia com alguma diferença do quotidiano: economizava-se dinheiro para comprar algo necessário em todos os dias, mas cuja estreia era reservada para o dia de Natal; economizava-se no açúcar racionado, para se poder cuidar da doçaria naquela noite de consoada. Nessa refeição comia-se o que era uso comer-se em qualquer aldeia da região. O importante, contudo, era o encontro da família naquele repasto festivo. Só o facto da família se congregar para essa refeição já marcava o cunho festivo, mesmo que não houvesse grandes e extraordinários sinais festivos próprios dos grandes acontecimentos. Mas, mesmo assim, era Natal! Natal único, igual ao qual nunca mais encontrei outro! Fiz a experiência da falta deste Natal, assim vivido, no primeiro Natal que passei fora de casa, aos treze anos de idade; senti saudades deste Natal, quando, em 1963, vinte anos depois destes natais, o passei numa aldeia de Itália, onde o Natal, sendo Natal, não sabia a Natal! D. Manuel Madureira Dias, Bispo Emérito do Algarve

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