D. António Ferreira Gomes e o 25 de Abril

Chama-me a atenção o facto de a Comissão promotora das celebrações do 30º aniversário do 25 de Abril não se fixar apenas na recordação histórica desse momento de 1974, mas que esteja a fazer ressaltar o crescimento humano-social, ou o salto de qualidade, que isso representou na vida do nosso povo: “Abril é evolução”. E creio que tem razão. Se evocasse apenas o facto, veríamos a Revolução de Abril como um mero «deitar abaixo», um lançar por terra de algo – e não só o regime político – que tinha de ser apeado para que em seu lugar despontasse uma realidade nova, mais consentânea com a dignidade humana. Embora ética, social e politicamente justificadíssima, a Revolução – todas as revoluções – não passaria de uma quebra da legalidade, um vazio orgânico que só o segundo momento – o da evolução – pôde legitimar. É a nova «qualidade de vida» intentada (que é essencialmente da ordem do sócio-cultural, e não só do económico) que se demarca, pela positiva, do que foi preciso rejeitar. Esta reflexão parece-me indispensável para se perceber bem a natureza e o timbre do vínculo de D. António com o 25 de Abril. É que ele não o fez de arma nas mãos, nem saiu às ruas a clamar vitória; mas preparou longamente o tal âmbito sócio-cultural onde ele pudesse implantar-se. De facto, como poucos, pela doutrinação e postura da vida, o antigo Bispo do Porto preparou as mentalidades e as consciências para o acolhimento do tempo novo. E – o que não é menos importante – depois dessa chegada, soube colocar a tónica na «evolução», quando, nessa altura crítica, as massas ideologizadas embarcavam alegre e infantilmente na inconsciência colectiva que muito bem poderia ter levado a que a pureza da revolução se dissolvesse na mais obscura e aniqui-ladora involução. Isto não lhe foi fácil, nem lhe granjeou grandes aplausos. Só a verticalidade da postura e a capacidade de não oscilar perante o horizonte de significação que o guiava lhe permitiram manter-se de pé quando a generalidade se aninhava. Por isso, como o seu Mestre a quem devota-damente procurou servir, D. António foi sinal de contradição: “bispo vermelho” para uns, acabaria por ser etiquetado de “contra-revolucionário” por outros (se é que o não foi pelos mesmos!). Mas até se entende: a sua diferença – pela positiva, claro está- é que chocava as maiorias de circunstância. E não podia ser de outro modo: se todos já estivesseis elevados a um alto patamar sócio-moral, para quê a existência de líderes e condutores sociais? As vicissitudes históricas Vejamos então, ainda que de forma necessariamente telegráfica, em que é que o pensamento e a acção de D. António sonharam, prepararam, saudaram e ampararam o melhor do 25 de Abril, isto é, o estado de adultez social, ética e política da sociedade portuguesa. A nível factual, é claro que o longo exílio de dez anos a que foi sujeito constituiu um grande acontecimento que obrigou a consciência de muitos a discernir se se poderia dar o aval a um regime que a todos pretendia manietar, inclusivamen-te a esse espaço de liberdade que deve ser a Igreja. Evidentemente que exilar um bispo tinha de ser uma notícia que percorresse toda a sociedade e isso não se poderia esconder com a mesma facilidade com que se ocultava uma prisão da PIDE. E isto mexeu com a «paz podre» social. Depois, todo o sistema de confronto – não procurado, mas também nunca recusado – com o caduco sistema colonial. Referiria como mais significativos: a célebre carta-resposta ao Arcebispo de Connakry, Mons. Tchidimbo, sobre o colonialismo português; a solidariedade activa manifestada ao clero do Ultramar desterrado em Portugal (por exemplo, Mons. Neves, Vigário Geral de Luanda, ao célebre P. Joaquim Pinto de Andrade e aos futuros bispos D. Franklim e Card. Nascimento); a tomada de posição perante os massacres praticados pelos Comandos em Moçambique (Wilymur e Mucumbura); a denúncia de um certo estilo nacionalista de assistência religiosa às forças armadas, na célebre homilia do Dia Mundial da Paz de 1972, o que desencadeou tal tempestade que, segundo o próprio, se chegou “a pensar na execução definitiva de quem a proferira”; enfim, a defesa implícita dos intervenientes no episódio da Capela do Rato. O pensamento teológico-moral Porém, e ao contrário do que muitos quereriam, não é a nível dos factos que encontramos o melhor da acção de D. António, pois esse é o terreno próprio dos políticos no activo, coisa que ele sempre recusou ser ou parecer. O que é típico do bispo é a proposta doutrinal: que o bispo pregue, alto e bom som, a teologia da sua Igreja, e que o ouça quem quiser. Foi o que ele sempre fez, no exercício do ministério do seu magistério, e que tanto desagradou aos poderes instituídos. Esse ensino passa por múltiplos e amplos vectores que, por uma questão de síntese, se poderiam agrupar nos seguintes fundamentais: – reivindicação da dignidade humana, a qual só se pode exercer em liberdade e autodeterminação, pois passa precisamente por aí a fronteira que separa a sociedade dos homens do mero rebanho balante; – afirmação da interdependência –mas jamais fusão ou identificação- entre a política e a moral, pois aquela é um modo qualitativo de o homem se realizar como ser de relação com os outros, isto é, um aferidor do seu timbre moral; – equação entre paz e o verdadeiro «tonus» ético-social de um povo, entre nós confirmado pelo universalismo da história e tradição portuguesa antiga que mostram que fomos mais cultores dos direitos humanos (civilizadores) do que repressores dos povos indígenas, ao contrário do que acontecia nos anos anteriores ao 25 de Abril; – defesa acérrima da democracia, pois só esta permite a exteriorização social da liberdade em formas de vida colectivas que intentam a nobre e cristã tarefa do maior bem possível para todos e como conquista de todos; – afrontamento da questão da justiça social, mormente o estado calamitoso da agricultura de subsistência (na celebér-rima conferência sobre “A miséria imerecida do nosso mundo rural”) e a reivindicação do direito à greve (na vulgarmente denominada “Carta a Salazar)”, o tema que mais enfureceu o governante de então; – enfim, a insistência, no «ad intra» eclesial, da efectiva separação – não oposição, evidentemente, mas respeito das autonomias próprias de cada um – entre a Igreja e o Estado, sem constantinianismos nem saudosismos de regimes de cristandade. Com estes e muitos outros temas, tratados sempre que as circunstâncias o exigiam, D. António deu entrada, por direito próprio, no restrito grupo dos que mais semearam as melhores sementes que haveriam de florir em Abril. Cada um semeou à sua maneira. Ele, pregador da fé, semeava esta convicção: “O Reino de Deus tem a ver com a salvaguarda universal dos direitos humanos, base ético-jurídica do reconhecimento da dignidade transcendente de todas as pessoas”. Será que, trinta anos depois, já está reconhecido histórica e socialmente o inestimável contributo que deu? Creio que a melhor forma de lhe mostrar esse reconhecimento é promover a «evolução» ético-jurído-cultural da sociedade. Tarefa ainda não cabalmente realizada. Sinal de que falta cumprir Abril. E cumprir o magistério teológico-social deste ilustre filho da Igreja. Manuel Linda

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