D. António Barroso, um Bispo mal-amado pela República

Amadeu Gomes de Araújo apresenta vida e obra de quem se insurgiu contra a injustiça praticada para com a Igreja

D. Carlos Azevedo e Amadeu Gomes de Araújo são autores da obra «O Réu da República», com a chancela da Aletheia Editores, e que apresenta a vida e obra de D. António Barroso (1854-1918).

Da obra brotam a densidade das características do seu tempo, permitindo no percurso da sua vida reunir os grandes debates de um arco de tempo significativo.

António Barroso nasceu em Remelhe, Barcelos, em 5 de Novembro de 1854. Formou-se no Colégio das Missões Ultramarinas de Cernache do Bonjardim, de 1873 a 1879.

Ordenado sacerdote missionário em 20 de Setembro de 1879, foi missionário no Congo, Angola, de 1880 a 1891. Destacou-se como Bispo Missionário em Moçambique de 1891 a 1897 e em Meliapor, na Índia, de 1897 a 1899. Foi Bispo do Porto de 1899 a 1918. Faleceu a 31 de Agosto de 1918

 

Agência ECCLESIA (AE) – O percurso de vida de D. António Barroso é muito abrangente, mas ficará conhecido como o «Réu da República»?  

Amadeu Gomes de Araújo (AGA) – Também foi «Réu da República». D. António Barroso é conhecido, sobretudo, como bispo do Porto e pelas relações difíceis e conturbadas com Afonso Costa. Foi julgado duas vezes – uma em Lisboa e outra no Porto – e expulso da diocese. No entanto, para mim, a fase mais criativa e de acção pastoral foi quando era missionário. Em Portugal, as missões é um assunto que não tira o sono a ninguém.

 

AE – Essa criatividade passou pelo desbravar caminhos…

AGA – Na sua acção como missiólogo. Foi um homem que agia e reflectia sobre a sua acção. Tentou imprimir caminhos diferentes à missionação. Na altura em que ele foi enviado para Angola, existiam problemas graves nas missões.

No mês de Agosto de 1880 foi para Angola com D. José Sebastião Neto, novo bispo da diocese de Angola e Congo. Foi com a incumbência de restaurar a antiga Missão de S. Salvador do Congo porque esta estava, totalmente, abandonada.

 

AE – O seu vigor e novidade pastoral relançaram essa missão?

AGA – Em moldes novos e em «competição» com os Protestantes. Trabalhou muito e bem naquela zona durante oito anos. No Padroado, as missões situavam-se todas no litoral… Depois da preparação no Colégio de Cernache do Bonjardim, os missionários iam para as terras de missão, mas ficavam na zona litoral desses países. Neste ponto, D. António Barroso foi original. Tentou por tudo para que a missionação se fizesse, não do litoral para o interior, mas no sentido inverso. Fez longas viagens e ficou conhecido como «missionário todo-o-terreno». Passou meses fora, com o intuito de criar missões.

 

AE – Depois desse período volta a Portugal?

AGA – Como colaborador e amigo do estadista Barros Gomes trabalhou na reorganização e redistribuição das áreas de acção de cada uma das dioceses do Padroado português, em África.

 

Evangelizador

AE – Por pouco tempo, visto que foi nomeado bispo no início da década de 90?

AGA – Foi ordenado bispo, com o título de bispo de Himéria, em 1891, e seguiu para Moçambique. Esteve três anos neste país, mas passou o tempo todo fora. Dormia ao relento. Chegou a passar cinco meses no mato. Como os padres de Cernache tinham medo de avançar para o interior do país, D. António Barroso foi a esses sítios e indicou os pontos nevrálgicos onde se deveriam criar missões novas. A missionação é para o povo.

Ainda no capítulo das originalidades, D. António Barroso apostou também nos irmãos leigos. Homens que ensinavam profissões aos nativos. Segundo ele, a missionação não deveria ser feita apenas por padres.

 

AE – A evangelização também passava pelo trabalho e pelo ensino.

AGA – Deu uma orientação nova à missionação. Deu grande importância à formação da juventude. Foi ele que criou as primeiras escolas femininas em Moçambique. Por outro lado, como o Colégio de Cernache do Bonjardim era criticado por políticos, militares e jornalistas, ele entendeu e repensou a formação dos padres daquele colégio. Aquele tipo de padre não interessava para as missões. Para D. António Barroso, o Colégio das Missões Ultramarinas (Cernache do Bonjardim) estava ultrapassado.

Sentiu a necessidade de criar um estilo de padre diferente. Um padre que esteja preparado para o povo. Não se podem preparar padres que não conheçam o mundo onde vão trabalhar. Pensou na criação de seminários em África. Lutou muito para ter um seminário lá, mas não conseguiu…

 

AE – Há razões específicas?

AGA – O nível de escolaridade e de cristianização era zero ou quase zero. Não havia candidatos. Perante estes factos, pensou em reorganizar o Colégio das Missões Ultramarinas, de Cernache. Ele é que projectou e sonhou aquilo que, actualmente, é a Sociedade dos Missionários da Boa Nova. Os Missionários da Boa Nova são os herdeiros do projecto missionário de Cernache do Bonjardim.

 

AE – D. António Barroso é o elo que liga os padres de Cernache (onde ele estudou e se formou) com a Sociedade dos Missionários da Boa Nova?

AGA – Sim. No entanto não viu nascer o projecto. Vingou somente depois de ele ter morrido. Ele morre em 1918 e a Sociedade dos Missionários da Boa Nova nasceu depois. Os padres antigos eram simples franco-atiradores. Iam para as missões, durante oito anos, e voltaram. Era o estilo de serviço obrigatório. Não havia continuidade no trabalho.

 

AE – Depois da sua «comissão de serviço» em Angola defendeu novas formas de missionação numa célebre conferência.

AGA – Foi na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1889, sobre as missões. A convite de Luciano Cordeiro, ele relatou a sua experiência em Angola e as necessidades de reformar a missionação.

 

Relações com o poder

AE – Tinha boas relações com os órgãos de poder? 

AGA – Chegou a ser apoiado pela rainha em algumas das suas iniciativas.

 

AE – A época do Regalismo…

AGA – A Igreja estava dependente do poder estatal. O facto da Igreja ter obrigações – o Padroado obrigava a Igreja a cuidar algumas missões no Oriente – que não conseguia cumprir colocou-a em situação fragilizada. A Igreja não tinha padres para enviar. Quem acaba por suprir estas necessidades é a «Propaganda Fidei».

 

AE – É neste contexto que D. António Barroso é nomeado para Meliapor (Índia)?

AGA – Existiam problemas e carências graves no Oriente. Ele foi o mediador desses atritos entre a Propaganda Fidei e os padres da Igreja Católica.

 

AE – Esse conhecimento «extra portas» (Angola, Moçambique e Índia) deu-lhe novos rasgos pastorais. A diocese do Porto esperava por ele e pelas suas lutas em defesa da Igreja…

AGA – D. António Barroso foi formado dentro de ideais, marcadamente, monárquicos, tal como o projecto de Cernache. Quando chegou de Moçambique, a primeira visita de D. António foi à rainha. Apoiou-o sempre. Ele tinha boas relações com a monarquia. Chegou a ser candidato a deputado… Quando chegou a República ele aceitou o novo regime.

 

Lei da Separação

AE – Tal como a Igreja em geral. 

AGA – É verdade. Só que o projecto de Afonso Costa – Ministro da Justiça e responsável pelos assuntos eclesiásticos – passava pela secularização a todo o custo. Neste processo, as escolas são transformadas em grandes centros de secularização. É proibido qualquer ensino religioso. Esta é uma das medidas que vai enfurecer D. António Barroso e a Igreja. A expulsão das Ordens Religiosas, a extinção dos feriados religiosos e extinção do ensino religioso irritam o episcopado. Este junta-se, na véspera de Natal de 1910, e preparam uma Pastoral Colectiva que é elaborada pelos bispos de Évora e por D. António Barroso.

Preparada para ser publicada no mês de Fevereiro de 1911, o regime tem conhecimento desse documento e proíbe a divulgação.

 

AE – Ele não atende a essa ordem.

AGA – Ele jogou. Entendia que estavam a ser defendidos os interesses superiores da Igreja. Foi dizendo a Afonso Costa que sim e que não. Há uma célebre noite onde trocam telegramas. O documento acabou por ser lido nas missas. O Ministro da Justiça, Afonso Costa, chama-o a Lisboa onde lhe fazem um julgamento apressado. Foi apedrejado e apupado na Rua do Ouro. O diploma que o expulsa é datado do dia do julgamento e assinado por ministros que não estavam presentes. Estava tudo preparado… No dia 7 de Março de 1911 é julgado, condenado, preso e expulso da sua diocese.

Exílio

AE – Foi «transferido» do Porto para Cernache do Bonjardim. 

AGA – Mandou-o desterrado para Cernache, a tal casa onde ele tinha feito a formação.

Conhecidos como cárceres e casa de mentecaptos, os seminários eram detestados pelo regime. Com o anseio de secularização, o regime cria núcleos e grupos revolucionários dentro dos seminários.

Um mês após a sua ida para Cernache, na véspera da publicação da Lei da Separação (19 de Abril de 1911), há uma grande reviravolta naquela casa. Um grupo de alunos apupa os padres: «morram, morram…». Foi uma encenação com vista a mudar o regime.

Nessa noite, D. António Barroso não dormiu no Seminário. No dia 20 de Abril é publicada a tal lei com um artigo dedicado a Cernache e ao destino a dar àquele Seminário. Naquele ambiente de revolução, ele não pode ficar no Seminário e vai para casa de um amigo médico.

 

AE – Mas sempre controlado…

AGA – Estava com autorização do regime, mas continuava controlado. Ficou até ao dia 10 de Junho. Nessa data foi para a sua terra natal, Remelhe, Barcelos. Ali viveu até 1914. É nesse período que acontece o «célebre episódio» (deslocou-se a Custóias para fazer um Baptismo) da ida dele ao Porto e o novo julgamento.

 

AE – Há registos escritos desses tempos de exílio?

AGA – Ele tinha um secretário, o Pe. Sebastião Braz, que foi o seu primeiro biógrafo. O Pe. Sebastião fala dessa época em Remelhe. Nesses três anos, foram ordenados por ele muitos padres da diocese do Porto. Secretamente – suponho que o governo fechava os olhos -, ele presidiu, numa capelinha de Remelhe, a cerca de 60 ordenações presbiterais.

 

AE – Comunicava com a diocese através de Cartas Pastorais?

AGA – Ele escreveu muitas Cartas Pastorais e trabalhos ligados à sua acção pastoral. Foi também um excelente tradutor. Por outro lado, D. António Barroso escreveu também sobre a agricultura. Interessou-se muito pelo mundo do trabalho e mostrou um grande apego à lavoura. Habituou-se a ver, com olhos críticos, o ritmo do ciclo agrícola. Incitou as pessoas a organizarem-se no espírito cooperativo e associativo.

 

O regresso

AE – Em 1914, um grupo de deputados manifesta-se contra a «injustiça ao bispo do Porto». 

AGA – Sim. A Lei fundamental da República não permitia que uma pessoa fosse expulsa por toda a vida. A situação não poderia manter-se indefinidamente… e voltou à diocese.

 

AE – Foi recebido em clima de festa

AGA – Fez-se uma grande festa e foi recebido de braços abertos. As fotografias mostram essa manifestação.

 

AE – Tem um bom espólio fotográfico de D. António Barroso?

AGA – Algumas delas são inéditas. Muitas delas devo-as ao Pe. António Trigueiros, que é descendente de um velho fidalgo que apoiou D. António Barroso. Esse fidalgo estimulou-o a estudar.

 

AE – Nas fotos, ele aparece com longas barbas. Há alguma razão específica?

AGA – Era o único bispo que usava barbas. Faz parte do conceito de missionário usar barbas. Quando foi nomeado para bispo do Porto pediu à Santa Sé – vi isto num jornal – autorização para usar barbas. Para ele, as barbas eram um símbolo do seu passado de missionação. A família Trigueiros tem uma caixa com um pedaço das barbas dele. Uma relíquia.

 

Preservar a memória

AE – Pode deduzir-se que o interesse pela figura de D. António Barroso começou muito antes da ida dele para o Porto? 

AGA – O processo de canonização de D. António Barroso entrou em 1992, mas ele já tinha fama de santo. Foi uma figura muito grande. A República tinha medo dele. Afonso Costa tinha «medo» dele e tentou, por todas as formas, abafá-lo. Em 1954, quando se comemorou o centenário do nascimento de D. António Barroso, Barcelos engalanou-se para homenagear esta figura. Foi um acontecimento impressionante.

Na parte mais nobre da cidade de Barcelos, o monumento maior é de D. António Barroso.

 

AE – Há mesmo a «Associação do Grupo de Amigos de D. António Barroso» que comemora as datas do nascimento e da morte deste bispo. Como surgiu a sua paixão por esta causa?

AGA – Nasci em 1947 e conheço D. António Barroso desde muito novo porque sou de Barcelos. Em 1954, fiquei impressionado porque nunca tinha visto milhares de carros que acorreram a Barcelos para as comemorações. Mais tarde entrei para o Seminário de Cernache do Bonjardim…

 

AE – Por influência dele?

AGA – É verdade. Eu fui para o Seminário por influência de D. António Barroso… Em Cernache existem imensas referências (azulejos e outros) a este bispo lutador. Foi um homem que defendia causas.

 

AE – Defendia causas sem medo…

AGA – Há uma frase dele – quando foi julgado – que é celebre: «Há duas coisas das quais sei que não irei morrer: parto e medo».

 

AE – Com as comemorações da Implantação da República, a figura de D. António Barroso volta à ribalta. Marcou a história pela totalidade do seu percurso ou pelo exílio que sofreu?

AGA – Nunca teria passado despercebido da história. Se não tivesse existido a República, ele teria sido cardeal, tal como foi o seu antecessor, Cardeal D. Américo. Era uma figura de prestígio… Ele é grande no Porto e Barcelos pela sua bondade. Ele tinha a imagem do homem santo.

 

AE – Falta o milagre para a canonização…

AGA – Ele dava tudo… Quando foi ordenado bispo, a mãe ofereceu-lhe o seu cordão de ouro. Com um alicate desfez o cordão e deu as argolas aos mais necessitados. Tinha uma bondade infinita… Não foi a perseguição que lhe deu a auréola. Tanto os pobres como os membros do clero defenderam-no sempre. Quando ele esteve em Cernache, o clero do Porto visitava-o com frequência. O clero do Porto apoiou sempre a causa de D. António Barroso.

O que falta é o milagre… Se aparecesse o milagre, tudo se alterava.

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Agência ECCLESIA

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