Cultura: Sophia, entre o catolicismo e a mitologia

«Talvez toda a sua poesia tenha sido uma metáfora ou sombra de uma fé» na Igreja Católica», considera Richard Zenith

Lisboa, 28 Jan (Ecclesia) – Sophia de Mello Breyner era “assumidamente católica” mas “reconhecia Deus, a religiosidade e o mundo espiritual em termos mais universais”, defende o escritor Richard Zenith.

Em entrevista à Agência ECCLESIA, o investigador considera que o poema ‘Ressurgiremos’, em particular a sua quarta e última estrofe – “Pois convém tornar claro o coração do homem / E erguer a negra exactidão da cruz / Na luz branca de Creta” – constitui, “talvez”, o texto “mais emblemático do sincretismo” de Sophia.

“Embora não haja qualquer menção de Deus ou de deuses”, acrescenta, ‘Ressurgiremos’ tem “inequívocas referências à teologia cristã e a crenças pagãs”, designadamente na “ressurreição”, que “terá lugar não em Jerusalém ou em Roma, mas sim em Creta”, ilha do Mediterrâneo evocativa de narrativas e personagens da mitologia grega.

Richard Zenith foi um dos oradores do colóquio internacional sobre Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) que decorre entre 27 e 28 de Janeiro em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian.

Na intervenção que proferiu hoje, o tradutor defendeu que a poesia de Sophia é “assertivamente cristã”, sendo simultaneamente influída “pelo mundo antigo, que respira fundo o sentimento pagão”, entendido como a “percepção directa e objectiva da natureza”.

A novidade é que esta convivência dos deuses pagãos com o Deus do cristianismo “não decorre de uma atitude estética nem de uma estratégia literária”, referiu o ensaísta durante a conferência intitulada ‘Uma Cruz em Creta: a salvação sophiana’.

Para “chegar à claridade e limpidez”, a poesia de Sophia conduz o leitor por um “confuso labirinto de alusões e associações, cruzando Creta com Delfos, a Grécia com o Algarve, o reino de Deus com o reino do homem, o mundo da terra com o do mar, o cristianismo com o paganismo”.

O tradutor natural dos Estados Unidos da América e radicado em Lisboa frisou que as “dualidades” associadas ao universo da autora “não costumam estar nem inteiramente concordes nem em plena oposição”.

“Talvez toda a sua poesia tenha sido uma metáfora ou sombra de uma fé nesta Igreja [Católica] e nos seus ensinamentos, que ela não dizia claramente por não haver palavras que a consigam dizer com justiça”, salientou.

Segundo Richard Zenith, a obra de Sophia evidencia um catolicismo que, “fiel ao sentido primitivo desta palavra, se caracteriza pela sua amplitude e abertura, preocupando-se pouco ou nada com doutrinas ou dogmas”.

“A sua poesia – prosseguiu – é essencialmente liturgia, culto, oração, profecia, sendo as palavras que a compõem elos, anéis, instrumentos de religação com o reino do ser humano, o qual foi criado, segundo alguns crêem, à imagem de Deus”.

No entender de Richard Zenith, “a palavra é o fio de linho” que guia Sophia, criando “o laço entre o mundo subjectivo – atravessado por zonas obscuras e perigosas – e o mundo claro e evidente que todos conhecemos”, ao mesmo tempo que liga o humano ao divino, a mitologia pagã à doutrina cristã”.

“Assumindo-se como um oráculo, não por presunção mas por vocação que lhe foi dada, Sophia de Mello Breyner insere-se numa linhagem antiga que não fazia distinção entre poesia e profecia”, sublinhou o ensaísta especializado na obra de Fernando Pessoa.

RM

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Agência ECCLESIA

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