Escritora sugere à Igreja que aposte numa «formação cultural humanística e artística muito forte»
Lisboa, 17 nov 2011 (Ecclesia) – A escritora Lídia Jorge considera que a maior dificuldade na relação da Igreja com a cultura reside na incapacidade de os padres transporem para os dias de hoje o sentido das leituras bíblicas proclamadas nas celebrações litúrgicas.
“O principal obstáculo talvez resida na dificuldade que os sacerdotes encontram em passar das narrativas bíblicas e da leitura do Evangelho, altamente metaforizadas, para as parábolas da atualidade”, escreve a autora na edição de novembro do “Observatório da Cultura”.
Ao responder à pergunta “O que é mais importante (criar, manter, repensar) na relação da Igreja com a Cultura?”, Lídia Jorge sublinha que “desocultar os sentidos do mundo atual através do ‘texto sagrado’” exige o conhecimento de narrativas contemporâneas, como a “parábola” e a “poética”.
A proposta, “difícil de cumprir”, exige “uma formação cultural humanística e artística muito forte”, para evitar os “riscos” e a “dificuldade” causadas pela utilização de “textos exteriores ao cânone religioso” ou a narrativas colhidas no “dia a dia”, refere a escritora no boletim semestral do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
O clero, acrescenta, opta por refugiar-se “num discurso cristalizado pelo uso” e “inofensivo pela decantação que o tempo tem trazido”, mas “um dia, mais tarde ou mais cedo”, o “contágio” com a cultura “vai ser inevitável, se a Igreja desejar ter argumentos para salvaguardar o que do seu património considera intocável”.
Lídia Jorge nota que em “determinados contextos a Igreja ainda associa a criação de ambientes e discursos pouco inteligíveis como forma de desencadear relações místicas” mas realça que também “se assiste à prática salutar de uma crescente aproximação do discurso lógico, interventivo, por vezes com alto grau de racionalidade e muita informação”.
Outro aspeto a reformar, “talvez tão importante quanto a revisão do discurso” é o “investimento nos contributos do canto, da música e da coreografia nas várias cerimónias com que a Igreja acompanha os momentos fundamentais da vida”, salienta.
José Pedro Serra, professor da Universidade de Lisboa, sublinha que seria “muito prejudicial para a noção de identidade e missão da Igreja” se ela possibilitasse a ideia de que se pode “dissolver ou reduzir à cultura”.
Para Manuel Carmo Ferreira, docente na mesma universidade, a relação dos católicos com a cultura tem de processar-se de acordo com o “pólo da invenção permanente do novo”.
A escritora Leonor Xavier lembra o encontro inter-religioso de Assis, a 27 de outubro, quando o Papa “chamou pessoas não crentes para expressarem o seu pensamento sobre questões fundamentais como a paz, a justiça e a liberdade, que também são coordenadas de cultura”.
A especialista em estudos clássicos Maria Helena da Rocha Pereira, distinguida pela Igreja Católica em 2008 com o Prémio Árvore da Vida – Padre Manuel Antunes, recorda uma frase de Werner Heisenberg, “um dos mais notáveis cientistas de todos os tempos”: “O primeiro golo da taça das ciências da natureza torna-nos ateus, porém, no fundo da taça, Deus está à nossa espera”.
Os mais de 25 depoimentos reunidos pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura estão a ser gradualmente disponibilizados no seu site.
RJM