Cultura: «O caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal» – cardeal José Tolentino Mendonça

Cerimónias no Mosteiro dos Jerónimos lembram «dívida» do país ao ensaísta e escritor que cuidou «com rara capacidade a ideia de comunidade»

Foto Agência ECCLESIA/PR

Lisboa, 02 dez 2020 (Ecclesia) – O cardeal José Tolentino Mendonça lembrou esta manhã, nas exéquias de Eduardo Lourenço, “o explorador e o cartógrafo”, “o psicanalista do destino e o decifrador de signos”, “investigador generoso e iluminado” a quem Portugal deve maior entendimento de si.

“Teixeira de Pascoais, que escreveu a «Arte de ser português», quis ser enterrado num caixão em forma de lira; o caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal, do qual ele foi e será, para muitas gerações futuras, um explorador e um cartógrafo, um detetive e um psicanalista do destino, um sismógrafo e um decifrador de signos, uma antena crítica e um instigador generoso e iluminado. Depois dele, todos podemos dizer que nos entendemos melhor a nós próprios”, afirmou o arquivista e bibliotecário da Santa Sé, no Mosteiro dos Jerónimos.

Eduardo Lourenço, ensaísta, professor, filósofo e crítico literário morreu esta terça-feira, em Lisboa, aos 97 anos de idade, tendo sido decretado para hoje, dia de luto nacional.

O cardeal Tolentino Mendonça disse que o luto que Portugal faz de Eduardo Lourenço pertence aos lutos que “excedem o domínio pessoal, pois configuram como uma experiência de perda coletiva”.

“Quando morre um escritor, a literatura fica enlutada mas também acontece, raramente – é verdade mas acontece – que, com alguns escritores, a própria literatura ou uma ideia de literatura ou uma inteira ética da literatura morra com eles, pois naquele criador que partiu os leitores de uma geração, que até pode ser de uma geração futura, reconhecem uma razão, uma sabedoria, uma verdade ou um fulgor, onde se encontraram refletidos, interrogados, transportados a uma fronteira de si próprios e do mistério”, afirmou.

Recordando a inscrição no túmulo de Rafael, “esculpido por Pietro Bembo, no panteão de Roma” – «Aqui jaz Rafael Sanzio, que enquanto vivo a natureza temeu por ele ser vencida; mas agora morto, a natureza teme morrer com ele» – o cardeal português disse que, perante a morte de Eduardo Lourenço, se teme morrer.

Montaigne, o inventor moderno dos ensaios, escreveu que aprender a morrer é vencer a sujeição e ultrapassar finalmente a condição de escravo. A Eduardo Lourenço devemos a lição de interrogar, não só a vida mas também a morte, com sabedoria, distanciamento, serenidade e esperança, lutando para conter a história nos limites do humanamente aceitável, tarefa, como sabemos, trabalhosa e inacabada, mas também indeclinável, se quisermos que a civilização e o humanismo sejam mais do que uma abstração”.

Para D. José Tolentino Mendonça, Portugal deve ainda a Eduardo Lourenço a “rara capacidade do cuidar da ideia de comunidade”, uma conceção que “reforça o conjunto como nação”, elucida sobre “a experiência de bem-comum que é um país”.

Foto: Lusa

O bibliotecário da Santa Sé recordou uma pergunta a Eduardo Lourenço: «Professor, o que pensa de Deus?»

“E a resposta dele, abriu um alçapão. Trouxe aquele arrepio sideral do infinito que falava Pascal. «Sabe, mais importante do que dizer o que eu penso de Deus é saber o que Deus pensa de mim»”.

D. José Tolentino Mendonça fez memória, na homilia, da “única vez” que viu Eduardo Lourenço chorar, numa “conversa animada, sobre textos bíblicos, saltando entre personagens”.

“Ele tropeçou, como o apóstolo Paulo terá tropeçado na palavra «Jesus». E os seus olhos encheram-se de água e a sua voz silêncio, de lentidão e soluços. Passou muito tempo para que me dissesse, chorando: «Não há nada superior a Jesus. Já se imaginou um Deus que diz ‘Bem aventurados os pobres, os humildes, os misericordiosos, os puros de coração, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que constroem a paz’. Não há nada superior a isto»”, lembrou.

“Agradeçamos ao Deus das bem-aventuranças as palavras que Eduardo Lourenço nos iluminou sorrindo, e aquelas para cujo sentido ele nos abriu, chorando”, pediu D. José Tolentino Mendonça.

A cerimónia, decorrida no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, local que Eduardo Lourenço apelidou de “jardim de pedra”, foi presidida pelo cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e contou com a presença do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

LS

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Agência ECCLESIA

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