Exposição «Oblívio» patente na Galeria Belard, em Lisboa, até 23 de março
Lisboa, 15 mar 2024 (Ecclesia) – Os rostos imaginados de 233 pessoas que foram sepultadas, em 2021, pela Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, por não terem sido reclamados por família, está no centro da exposição da artista plástica Mafalda d’Oliveira Martins, «Oblívio».
“Eu quero convidar cada pessoa a uma reflexão interior, não apenas reflexão social, sobre o contexto em que está inserida, sobre a sua própria vida: onde é que existe solidão, onde é que não existe, onde é que nós podemos também ter a nossa presença a enriquecer a vida dos outros e, com muita liberdade, deixar essa reflexão a quem visita a exposição”, explica à Agência ECCLESIA a artista plástica.
Ao participar na igreja de São Roque, no Dia Internacional da Erradicação da Pobreza, em 2021, numa missa de sufrágio da Irmandade de São Roque, Mafalda d’Oliveira Martins, com 30 anos, nunca mais esqueceu o momento em que escutou os 233 nomes ali afirmados.
O “abalo interior” que sentiu provocou um questionamento sobre como poderia, a partir do seu trabalho artístico, responder à inquietação – «Como fazer memória de quem aparentemente não a deixou?»
A arte e o pensamento artístico têm um papel fundamental, porque nos faz chegar a lugares onde nós, para efeitos de assertividade e de objetividade, não chegaríamos. Leva-nos um bocadinho mais longe”.
Mafalda levou para o seu atelier a lista com 233 nomes, 14 deles de fetos, nados mortos ou bebés, e, entre o exercício artístico e a procura pelo melhor material para encontrar um rosto, imagens de pessoas que nunca chegou a conhecer foram dando forma ao “intangível”.
“Fui à simplicidade máxima dos materiais que tinha à minha disposição – o papel e o carvão, e acrescentei ao desenho a carvão a barra de médio de óleo que cria uma camada resinosa em cima do papel e permite que o próprio material defina como é que a forma se vai desenvolver. Isto para mim era importante porque não me interessava fazer exercícios de retrato. Eu queria fazer um desenho ambíguo, que pudesse comunicar a ideia desta pessoa”, traduz, resultando numa imagem que se foi desenhando perante a artista.
A exposição, patente na Galeria Belard até ao dia 23 de março, está disposta em quatro salas: na primeira, uma lista com o nome próprio de cada pessoa, sem o apelido, inscrito a carvão, acompanhados de um retrato, prepara o visitante para um percurso “em crescendo” e cada vez mais “denso”.
“Todos nós temos um número associado ao nosso nome e isso confere-nos um carácter abstrato para quem não nos conhece. Nós podemos ser categorizáveis, podemos ser quantificados e, assim, começamos nesse ponto, em que estas pessoas são um tema. Depois, entramos nas outras salas onde estas pessoas são uma vida e nós criamos relação com esta vida”, explica.
O objetivo da exposição é impactar, ser uma mostra seca, não floreada. A própria montagem da exposição quer convidar a refletir: não é a minha ilação sobre a vida destas pessoas, não é aquilo que eu construí à volta desta situação social, mas é apresentar esta situação como é, pelo menos da forma mais simples artisticamente, e esperar que as pessoas depois tirem as próprias conclusões”.
A artista apresenta a última sala como uma capela, onde 14 retratos ilustram que a solidão e o desconhecimento de vidas inclui bebés.
“Alguns têm nome, mas são raros. Esse momento resolvi deixar para o fim, e estes foram os últimos retratos a ser feitos – são mais pequenos, exatamente para criar quase como um altar, portanto como uma pequena capela, onde podemos estar com mais silêncio, menos ruído, a pensar nestas 14 vidas que estão ali representadas. A visita à exposição e o contacto com cada um destes desenhos não requer que seja apenas um momento”, explica.
Com estudos musicais, Mafalda d’Oliveira Martins compôs ainda uma peça musical «233», apresentada na inauguração da exposição por 17 vozes.
Senti, à medida que ia produzindo os retratos, que eles pediam um elemento que elevasse a forma. Não era imprescindível, mas sendo o elemento visual o que mais impera e, apesar do visual registar o intangível, a música muitas vezes arrebata-o, levando-nos para outra dimensão”.
Mafalda d’Oliveira Martins recorda cada retrato, reconhece-os pelo nome que lhes deu forma, e, ainda hoje, reza por cada uma das 233 pessoas.
LS