Padre Manuel Ribeiro, Diocese de Bragança-Miranda
O Papa Francisco vem reiteradamente alertando para a ‘cultura do descartável’ que o processo de globalização tem implementado na sociedade actual[1]. “Vivemos numa época marcada pela pressa, pela agitação e pelo imediatismo. Tais características são típicas de uma sociedade na qual a Globalização da Indiferença está enraizada e como tal produz efeitos nefastos, tais como, não compreender no outro o meu semelhante, o meu irmão, um prolongamento de mim mesmo. Desta forma, este funesto fenómeno, tão presente na nossa época, tende a aprisionar-nos numa redoma de egoísmo e de individualismo, assim, é preciso estar atento e combater a proliferação deste vírus que se manifesta nas mais diferentes formas e níveis” (O Papa Francisco e o combate à globalização da indiferença, 2020).
Já paramos para pensar que passamos grande parte da nossa vida a construir narrativas ou, pior, a acreditar nas narrativas ditas pelos outros e à espera que estes nos validem? Julgamos que a felicidade é um direito e que o seu alcance está somente na minha atitude e comprometimento com essa meta. Ouvimos como verdades absolutas esta enxurrada de ideias positivistas, autorreferenciais e obtusas. Na verdade, é uma amalgama de tudo e, no fundo, de nada.
Apercebemo-nos que a vida, ou melhor dito, o tempo, são uma realidade sem retrocesso. É impossível parar e/ou voltar atrás. A vida e o tempo continuam quer eu queira quer não, quer eu esteja preparado ou não, quer eu o viva ou não, quer eu o imprima de significado e de sentido ou não.
O risco, portanto, está no validar das nossas opções, decisões e acções com base nas pseudonecessidades ou das relativas prioridades que julgamos ter, ou que nos é dito que o são. Há no ar uma certa promessa de felicidade e de bem-estar nesta cultura dominante. Mas, com o passar dos anos levamos ‘um banho de realidade’ e apercebemo-nos que fomos enganados. Pior, apercebemo-nos que nos perdemos em nós mesmos e de nós mesmos, que não fomos capazes de ser vida e luz no outro, de deixar memória e saudade na vida do outro, que não pudemos nem soubemos viver o momento e a vida como dom e graça, como uma oportunidade e uma ocasião irrepetível de sentido, de significado e de missão.
Muitas são as perguntas que se levantam: se eu pudesse viver de novo a minha vida o que mudaria? O que faria diferente? Quem seria e o que seria para alguém? Que consciência teria eu da minha finitude, debilidade e carência? Quem seria eu se deixasse que Deus fosse em mim o actuante e protagonista principal? Que marca e que lembrança deixaria no coração dos outros?
Confesso que gosto muito de ler (de re-ler) a magistral obra de Alan Alexander Milne (autor inglês, 1882-1956), “Winnie-the-Pooh”. Este conto infantil é, na minha óptica, um belo texto de filosofia. Nele encontramos como identidade e alteridade se cruzam, permitindo a diferença e a inclusão, e a construção de uma rede de relações fraternais, genuínas e autênticas. Aqui, a violência do ego (do egoísmo e do egocentrismo) não tem lugar. Tudo concorre numa linha de cooperação e de fraternidade. Na verdade, esta não disrupção entre identidade e alteridade, faz com que o livro termine, brilhantemente, com a afirmação profética que “o menino e os amigos (animais) sempre jogarão juntos”. Esta frase dever-nos-ia tocar bem no fundo de nós mesmos. As pessoas sacrificam a sua alegria, a sua diversão, desejando-se levar por necessidades inconscientes de validar a sua existência.
Introduzo este conto infantil para sustentar a ideia de Byung-Chul Han de que a expulsão do outro e a implementação da positividade do igual trazem consigo graves problemas na unidade relacional entre identidade e alteridade. E, com isso, levantam na sociedade e no pensamento actual um conjunto de problemas e questões: de sentido e de significado, de propósito e de missão, de pertença e de comunhão[2].
[1] Interessante o que Fábio Pereira Feitosa escreveu sobre este alerta. Diz ele: “percebemos na fala do Papa Francisco, contundentes denúncias ao actual sistema que exclui aqueles que não podem pagar pelos benefícios da globalização e, como tal, entram numa nova categoria social, os sobrantes. Infelizmente, o número destes homens e mulheres só tem aumentado com o passar do tempo, o que evidencia uma total desproporcionalidade entre o desenvolvimento económico/tecnológico e o desenvolvimento social/humano” (O Papa Francisco e o combate à globalização da indiferença, 2020).
[2] Em “Sociedade paliativa: a dor de hoje”, Han “aborda questões relativas à busca por positividade e a rejeição da dor pelo ser humano. Na sociedade paliativa, a única busca é pela sobrevivência, preservando o corpo daquilo que a ele é externo e que a ele pode afetar: a dor e o outro. O autor afirma que a dor é um elemento humano e que a luta por sobrevivência, aliada à supressão da negatividade, corre o risco de tirar das pessoas tudo aquilo que é humano, negativo, e que diz respeito à existência perante os outros. A contradição seria a necessidade de, em tempos de pandemia, lutar pela própria saúde para que se consiga fazer também com que os outros sobrevivam. É um afastamento da dor do outro em nome de sua supressão e da sobrevivência mútua entre a positividade de não sofrer e a negatividade da empatia” («Byung-Chul Han», 2023).