Culto, cultura e identidade

O Património Religioso constitui um dos aspectos mais importantes do nosso legado histórico e cultural, aos mais diversos níveis O Património Religioso constitui um dos aspectos mais importantes do nosso legado histórico e cultural, aos mais diversos níveis. E, não é certamente por acaso que, entre os monumentos nacionais considerados Património Mundial pela UNESCO (património edificado, não-natural), 2/3 sejam efectivamente de carácter religioso, quer a título individual (Convento de Cristo em Tomar, Mosteiro da Batalha, Mosteiro dos Jerónimos e Mosteiro de Alcobaça), quer integrados em Centros Históricos (Angra do Heroísmo, Évora, Porto, Guimarães). Trata-se efectivamente de um aspecto basilar do nosso património, dado que a preocupação religiosa e os respectivos estabelecimentos se encontram presentes desde as nossas origens, tendo estado sempre associados a períodos fulcrais da nossa história política, cultural ou artística (Santa Cruz de Coimbra, Alcobaça, Batalha, Jerónimos, São Vicente de Fora, Mafra, ou Fátima). Dentro do património cultural, ele é o mais universal, o mais diversificado, o mais rico, o mais visível, e o mais presente em todo o território. Ele institui-se inegavelmente como a expressão maior da cultura portuguesa, e um elemento de identidade, não só reflexo de valores religiosos, como sociais, éticos, artísticos ou filosóficos. Por várias razões, trata-se de uma temática de grande actualidade, que tem ocupado um lugar de destaque dentro dos estudos patrimoniais, tornando-se objecto de um interesse crescente, pelas diversas questões que tem levantado. Uma delas, assenta nos perigos que este importante legado tem vindo a ser alvo, quer por razões de ordem humana como de ordem natural. Efectivamente, muitas igrejas e conventos têm fechado as suas portas, por falta de fiéis, de celebrantes, pela desertificação das regiões do interior, ou pela carência de fundos, decorrente do aumento crescente dos seus custos de manutenção. Só nas últimas décadas, fecharam 2 000 igrejas em Inglaterra, outros milhares nos Estados Unidos, 600 igrejas foram demolidas nos Países Baixos e, na Escandinávia, Alemanha, Bélgica e França, outras dezenas de milhar têm sido constantemente desafectadas das suas paróquias. Recentemente, este problema tem sido discutido em diversos congressos internacionais, com resultados bastante interessantes, e produtivos debates de ideias. Entre estes, o colóquio «Le patrimoine religieux du Québec : de l’objet cultuel à l’objet culturel », que teve lugar em Novembro de 2004, contou com 450 participantes, entre técnicos, investigadores ou simples apaixonados pelo assunto, reflectindo sobre o papel fundamental deste património ameaçado. Uma das principais questões em debate foi o da «patrimonialização», isto é, a conversão destes bens da Igreja, entretanto desafectados, de vocação cultual, em bens culturais destinados à sociedade civil, como meio de salvaguarda desta herança. Ora, esta necessária relação entre o cultual e o cultural, é encarada como um «rito de passagem», um espaço de contacto, um campo relacional que suscita discussões, estratégias de apropriação e até posturas de resistência. Pelas trocas e associações que gera, estes espaços tornam-se num lugar da cultura, e de criação, onde se estabelecem assim novas práticas culturais e novas identidades. Porém, o Património Religioso integra mais do que os locais de culto. Ele não diz somente respeito à preservação desses lugares, aspecto a que se tem dado maior importância, mas a uma reflexão, a longo prazo e integrante, de múltiplas dimensões. Não podemos esquecer que as igrejas se revestem de funções comunitárias, tanto cultuais como culturais, ou sociais, o que arrasta consigo necessariamente uma problemática pluridisciplinar, que deveria envolver clérigos, arquitectos, urbanistas, sociólogos, historiadores, etc., dadas as implicações culturais, históricas, antropológicas e sociológicas, suscitadas pela prática de um culto. O Património Religioso é um conceito de composição múltipla, memorial, cultural e identitária, fundamental para qualquer sociedade. Contudo, ele também é em si próprio um conceito “em aberto”, inter-relacional, sujeito a debate, que passa necessariamente pela reflexão, pelo estudo, avaliação, reconhecimento, conservação e consciencialização do seu valor. Esperemos que este Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, dedicado ao Património Religioso, ultrapasse o mero âmbito comemorativo deste tipo de ocasiões, e que possa efectivamente lançar um debate aprofundado sobre as questões que desponta, bem como fomentar o nascimento de macro-estruturas e instituições de promoção, pesquisa e desenvolvimento, à semelhança do que tem sucedido internacionalmente. Nuno Saldanha, Escola das Artes (Ext. Lisboa) – Universidade Católica Portuguesa

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