Crónica de uma crise anunciada

Os motins de fome em África, na Ásia e na América Latina surpreenderam-nos à hora dos telejornais. Habituados que estávamos a ver os pobres e famintos resignarem-se à sua sorte, e quando tudo parecia estar ajustado a uma nova ordem internacional – onde a China é a fábrica, a Índia o escritório, e o Brasil a fazenda agrícola – eis que nos chegam notícias da fúria dos pobres em países tão diversos quanto o México, o Egipto, o Haiti, o Uzbequistão, ou o Senegal. A onda de choque atingiu os Estados Unidos, com uma corrida desenfreada aos hipermercados com medo da escassez. Em Portugal começámos a ter consciência da importância da soberania alimentar perdida. Afinal, a agricultura ainda é necessária no Portugal do séc. XXI! As nossas crianças não se alimentam de “gadgets” tecnológicos, mas de cereais que podem vir a aumentar de preço, ou mesmo a escassear. Terá chegado a altura de explicar aos nossos filhos que, tal como os “meninos” não vêm de Paris no bico de uma cegonha, o trigo e o arroz não nascem nos supermercados. Há muito que os europeus nos habituámos a uma falsa ideia de que “o nosso mundo” já não tem guerra, nem fome, nem peste. Longe vão os tempos de revoltas populares contra o preço do trigo na Inglaterra do século XVIII, ou a revolução francesa – que sob o lema da liberdade, igualdade e fraternidade – escondia afinal a revolta do povo faminto. Mas será, a actual crise tão inesperada? A subida de preços era, há muito, previsível. O crescimento demográfico, a crescente procura de alimentos na Índia, na China e em outras economias emergentes, as alterações climáticas, a aposta nos biocombustíveis, a subida dos factores de produção – combustíveis e fertilizantes – são elementos que, conjugados com o desinvestimento na agricultura familiar, a concentração do investimento na produção de empresas transnacionais do sector agro-alimentar, a especulação financeira em torno do mercado de futuros, inevitavelmente causariam uma subida sustentável nos preços dos alimentos. Mas, então, porque nada foi feito? Talvez porque, depois da morte anunciada de deus, surgiu uma fé dogmática nos poderes do mercado. É evidente que o mercado é o sistema que mais incentiva a criação de riqueza, através do estímulo à produção e consumo de bens e serviços. Mas é também evidente que o mercado, por fundar-se na competição, beneficia os fortes e prejudica os fracos. Quando não é regulado, tende a agravar as desigualdades sociais. São os pobres quem perde. A subida de preços afectará mais gravemente uma família que já despende entre 50% a 80% do orçamento mensal na compra de alimentos, do que aquela que necessita de apenas 10% a 20% do seu rendimento mensal para satisfazer as necessidades alimentares básicas. Além disso, a fé na mão invisível do mercado ignora que apenas 15% dos alimentos consumidos, a nível mundial, são transaccionados nos mercados internacionais. O que fazer para minimizar os efeitos da crise alimentar mundial? O aumento do preço dos alimentos é uma clara ameaça para os pobres, em particular as populações mais vulneráveis dos países em desenvolvimento. Contudo, esta crise poderá também representar uma oportunidade para os agricultores pobres e para os trabalhadores rurais assalariados. A grande maioria dos pobres dos países em desenvolvimento vive da agricultura, pelo que preços mais elevados poderão representar um acréscimo nas suas fontes de rendimento. Para que esta seja uma oportunidade real, é necessário garantir que os ganhos de mercado cheguem aos pequenos produtores das áreas mais remotas, e não apenas aos grandes agro-negócios. A situação actual implica uma aposta decisiva em políticas públicas que favoreçam o desenvolvimento da agricultura familiar e de subsistência. Algumas recomendações para as políticas públicas dos governos locais e dos doadores internacionais. – Actuar com urgência para reduzir o impacto da insegurança alimentar, em especial no apoio às mulheres, as maiores produtoras de alimentos e responsáveis pela preparação dos alimentos; – Desenhar sistemas de segurança social universais, que protejam as famílias mais pobres dos choques alimentares; – Redesenhar os sistemas de resposta humanitária a fim de incluir estratégias preventivas; – Reformar o sistema de ajuda alimentar mundial, por forma a ser mais rápido, mais flexível e mais barato. Em vez de canalizar para os países pobres os excedentes de produção dos países ricos, os doadores internacionais deverão garantir financiamento aos governos locais e agências de ajuda humanitária para comprar alimentos junto dos produtores locais; – Colocar um ponto final nos incentivos à produção de biocombustíveis em larga escala, parcialmente responsáveis pelo aumento do preço dos cereais e pela destruição de florestas nativas com capacidade de sequestro de carbono; – Aumentar a ajuda pública ao desenvolvimento, nomeadamente a providenciada pelo Governo Português, canalizando mais recursos para apoio à agricultura familiar dos países pobres. – Garantir serviços financeiros, tais como seguros e crédito, aos produtores pobres; – Reconhecer que as alterações climáticas contribuem para exacerbar a actual crise alimentar, exigindo respostas adequadas ao nível da mitigação e adaptação. – Eliminar todo o tipo de subsídios à exportação de produtos agrícolas, que distorçam o comércio internacional ou beneficiem as grandes agro-indústrias. João José Fernandes, Director Executivo da Oikos – Cooperação e Desenvolvimento.

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