Homilia de D. António Marto, na Missa Crismal “Christus omnia est nobis” (Sto Ambrósio) 1. Saudação “Graça e paz vos sejam dadas por Jesus Cristo, que é a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Soberano dos reis da terra! Àquele que nos ama, que pelo Seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para o Seu Deus e Seu Pai: a Ele a glória e o poder pelos tempos sem fim” (Ap.1,5-6). Com estas palavras do apóstolo João chegue a todos vós a minha fraterna saudação pascal e eleve-se ao Senhor o louvor agradecido por este nosso encontro na Missa Crismal. Em todos as catedrais do mundo celebra-se hoje o “dies sacerdotalis” da Igreja, para bendizer o Senhor pelo dom do sacerdócio, para consagrar os óleos santos, para saborear, em particular intimidade, a fraternidade sacerdotal, para fazer memória de um dia inesquecível no qual dissemos “Sim” a Jesus Cristo e à Igreja e que hoje queremos confirmar através da renovação das promessas sacerdotais. Agradeço ao Senhor a grande alegria espiritual que hoje me concede. É a primeira vez que presido à celebração da Missa Crismal como bispo da diocese, para expressar a profunda comunhão sacramental entre o bispo e o seu presbitério. Neste espírito de comunhão saúdo-vos com caloroso afecto. Quero dizer-vos, com toda a sinceridade, que todos vós estais presentes no meu coração de Pastor. Saúdo com particular afecto o Senhor D. Serafim e faço-me intérprete da alegria de todos pela sua presença connosco. Em nome pessoal e de toda a diocese desejo exprimir a mais viva congratulação aos sacerdotes que ao longo deste ano celebram o jubileu da sua ordenação. Com uma recordação especial lembro os presbíteros doentes ou idosos impossibilitados de marcar a sua presença, mas seguramente unidos em comunhão afectiva. E, com eles, o nosso pensamento vai também para aqueles que foram chamados para a casa eterna do Pai. Não esquecemos, por fim, aqueles que por diversas circunstâncias, já não exercem o seu ministério. Que o Senhor lhes dê a certeza de serem recordados e amados por todos nós. 2. O ministério na complexidade actual Nestes nove meses que estou convosco tive a oportunidade de vos encontrar nas mais diversas circunstâncias. Devo confessar-vos, porém, que foi muito gratificante para mim o encontro pessoal com cada um, em audiência particular, desde o Natal até hoje. Tive a oportunidade de reconhecer que, da vossa parte, não falta o testemunho de uma fidelidade provada aos compromissos assumidos, de uma grande generosidade na dedicação e no serviço aos fiéis a vós confiados, de uma alegre satisfação apostólica de ser padre. Tudo isto não pode deixar de me encher de admiração e de me levar a dar graças por vós, a Deus, cujo Espírito nunca cessa de rejuvenescer e santificar a nossa Igreja de Leiria-Fátima. Com que alegria ouvi alguns de vós dizer: “Sinto-me feliz! Se tivesse de recomeçar hoje, tomaria a mesma opção!” Ao mesmo tempo, não posso esconder que, nos vossos colóquios comigo, aflorou também um outro rosto do vosso ministério: aquilo que o torna pesado, as dificuldades que são causa quotidiana de não pouco mal estar, de certo sofrimento e de alguma desilusão. Limito-me a evocar as dificuldades mais sentidas. Antes de mais, a sobrecarga dos compromissos pastorais aliada à crescente diminuição do número e das forças dos padres; a penúria de vocações; a mutação cultural reflectida num ambiente de secularização e indiferença que torna muitas pessoas, mesmo dentro das nossas comunidades, insensíveis aos valores espirituais e indiferentes a uma proposta verdadeiramente evangélica; as incompreensões e resistências à novidade de opções e iniciativas pastorais mesmo por parte de não poucos cristãos que são praticantes e até colaboradores próximos; o individualismo de muitos que os leva à perda do sentido de pertença afectiva à Igreja e à recusa de colaborar nos serviços da comunidade (catequese, conselho económico,…). Tudo isto, sem esquecer o desmoronar progressivo da “memória cristã” elementar, que leva a que muitos cristãos já não reconheçam a sua “língua materna”. E, enfim, a nossa própria fragilidade que facilmente cede ao desânimo, ao desencorajamento face à situação actual, sobretudo quando advertimos a desproporção entre tantas energias que consumimos e os poucos resultados que obtemos. Daqui as interrogações que por vezes nos atormentam: para que serve toda a minha jornada, a minha fadiga pelos outros, a minha dedicação se não há vocações, se não encontro colaboradores? Para quê tantos anos de sacrifício, se agora estou cansado, idoso, doente, se não sinto o fervor e a alegria de outrora? 3. Cada tempo é um tempo de provação e de graça Todos estes sentimentos encontram eco no coração do bispo a quem o Senhor confia o ministério do encorajamento como a Pedro: “Confirma os teus irmãos” (Lc 22,32). Com Jesus, o bispo diz a cada um de vós: “Vós sois os que perseverastes comigo nas minhas provações” (Lc 22,28). Por isso, hoje, quero oferecer-vos uma mensagem de conforto sob o título “Cristo é tudo para nós sacerdotes”. Como padres, vivemos tempos difíceis. Também os pais e educadores vivem este tempo com dificuldades. Mas cada tempo é sempre um tempo de provação e de graça. É certo que cada vez menos podemos apoiar-nos na tradicional “cultura cristã” que vemos desmoronar-se. Já não podemos viver das “glórias” do passado. Hoje, vivemos numa “diáspora espiritual”, num ambiente pluricultural e plurireligioso onde se oferecem os mais diversos modelos e projectos de vida. Mas foi precisamente esse o contexto em que nasceu e se desenvolveu o cristianismo. Por isso, o nosso tempo difícil pode tornar-se tempo abençoado de graça e esperança. O sofrimento da nossa época e que nos atinge pode transformar-se num convite da parte de Deus a ser mais cristão e mais padre. A própria complexidade do novo contexto do ministério faz nascer em nós a necessidade de reencontrar o que é verdadeiramente essencial na nossa actividade pastoral; a urgência de redescobrir o segredo do nosso ser padres; o fascínio de viver o nosso serviço na simplicidade que é típica do discípulo do Senhor. Só assim podemos assegurar e testemunhar a beleza e a alegria da nossa vocação e missão de presbíteros de Cristo e da sua Igreja. Como é possível? Por onde começar? A meu ver, voltando às fontes da nossa vocação, à Fonte viva e pessoal que é o próprio Cristo. Quer dizer que a primeira e principal solução para o nosso desânimo e para o nosso relançamento pastoral é de ordem interior. Está mais no nosso interior do que no nosso plano de trabalho. É preciso dar um salto de qualidade. Todo o encorajamento verdadeiro começa pelo trabalho no coração do padre. Racionalização e reestruturação, redistribuição de tarefas e responsabilidades, planos pastorais bem programados e implementados são seguramente indispensáveis. Ninguém o põe em dúvida. Mas a verdadeira reconstrução começará na nossa conversão interior e resultará dela, com nova pujança, sem prejuízo de reflectirmos, em próximas ocasiões, sobre as dificuldades já mencionadas. Na origem da nossa vocação não está um grande ideal humanista nem o desejo de uma boa realização profissional. Está o encontro vivo e pessoal com Jesus Cristo e a participação do Seu amor de compaixão pela gente (Cf.Mt 9,36). A nossa fé, a nossa esperança e o nosso ânimo não se fundam numa palavra, num texto ou num livro. Fundam-se numa pessoa viva e contemporânea a nós: Jesus Cristo ressuscitado! É sobre Ele que somos chamados a construir, a partir de novo, com novo fôlego. 4. Eu sou o Alfa e o Ómega: Cristo é tudo para nós Eis a razão porque me proponho reflectir sobre o que pode significar para nós, padres, a palavra de Santo Ambrósio “Cristo é tudo para nós”. É a palavra que está presente, embora de outra forma, na leitura do Apocalipse: “Eu sou o Alfa e o Ómega, Aquele que é, que era e que há-de vir, o Senhor do universo” (1,8). O livro do Apocalipse é um livro de consolação que quer infundir grande conforto, coragem e confiança à Igreja perseguida e aos cristãos tentados pelo paganismo e pelas seitas. É pois um texto escrito com o sangue da história e, ao mesmo tempo, uma obra de grande contemplação mística. Convida, antes de mais, a contemplar Cristo e a tomar consciência de quem Ele é para nós e a rever a nossa relação com Ele. Para isso traça um ícone grandioso e fascinante de Cristo, que é, simultaneamente, uma profissão de fé, um canto pascal de confiança e uma revelação de vida e de esperança. Ele é a Testemunha fiel do amor eterno e santo de Deus até à sua paixão na cruz; o Primogénito dos mortos, o Vivente que, solidarizando-se connosco na morte, nos faz participantes da sua vida divina; o Soberano dos reis da terra, o Vitorioso sobre as forças destruidoras do mal, da morte e do pecado. Por isso pode apresentar-se “Eu sou o Alfa e o Ómega”, isto é, Eu sou tudo para vós. A esta revelação responde uma explosão de louvor e gratidão “Àquele que nos ama” por parte da assembleia que se sente envolvida e segura pelo Amor presente, activo e incessante de Cristo: “Sim, Sim! Ámen!” – é uma resposta cheia de afecto e devoção, como que a confirmar: “Sim, Tu és Tudo para nós. Em ti pomos a nossa confiança.” Cristo fascina e perturba. Há determinados momentos em que Ele entra na vida de cada um e são momentos inesquecíveis. Mas é, sobretudo, o Cristo de cada dia, de todos os dias, que a Igreja precisa de sentir perto de si. Ele conservará a sua mão protectora sobre ela, tornar-se-á Ele próprio a garantia, a mensagem de confiança, encorajamento e comunhão. Despertará vocações para lhes confiar uma missão em favor da Igreja. Nós, sua Igreja, temos apenas que nos abandonar a Ele com todo o amor, confiança e empenho que Ele merece e inspira. 5. Como testemunhar que Cristo é tudo para nós sacerdotes? Creio que posso sintetizar tudo numa atitude que a tradição cristã chama “devoção”. O que é a devoção? É a atitude de entrega ao Senhor que leva a exclamar: “Totus tuus ego sum et omnia mea tua sunt”. Sou todo teu e tudo o que é meu é teu! É o fogo do amor que arde por dentro e leva a superar as fronteiras do que é devido por justiça ou obediência; o espírito de gratuidade que não calcula quanto vai ganhar ou perder; a alegria do Evangelho que enche todos os momentos da nossa jornada; a criatividade luminosa que investe a oração e a acção pastoral e nos leva a viver e trabalhar em comunhão. Sem este fogo interior, a vida do padre reduz-se a uma série de prestações obrigatórias, fatigantes, sem impulso e alegria. Tudo se esfria e as iniciativas são realizadas como obrigação e fardo pesado. O próprio ministério degenera em puro funcionalismo. O entusiasmo, o encorajamento e o apoio mútuos crescem no terreno da paixão por Cristo; e esta leva-nos a exercer o ministério com “devoção”, a sair da resignação e do pessimismo e a abrirmo-nos à esperança da hora presente. Não devemos nós padres aprender a ver com olhos de esperança o que germina e cresce nas nossas comunidades e nas comunidades à nossa volta? Há na Igreja uma grande quantidade de pequenos gérmenes, de pequeninas plantas e flores, porventura frágeis e quase invisíveis, mas que crescem em silêncio e de que não nos apercebemos: Crescem nas asperezas do caminho Pequenas flores brancas de esperança Não podem os espinhos afogá-las Pois foi o amor quem as chamou à vida! (Hino de vésperas da Quaresma) Cristo é tudo para nós, sacerdotes! – Despertar a fé viva em Cristo vivo e torná-lo inesquecível é a missão primeira e mais sagrada de um bispo e de um padre. As pessoas anseiam que lhes falemos mais da beleza e da ternura do rosto de Cristo do que da fealdade e do terror do diabo!… Meus caros padres, tende fé no vosso sacerdócio! Não tenhais medo! Tende coragem! Vós sois as sentinelas de uma primavera espiritual para o povo de Deus, para este nosso tempo. Para terminar, quero deixar a todos vós o meu testemunho de sincera estima e de viva e profunda gratidão. “Vós perseverastes comigo nas minhas provações”, disse Jesus aos apóstolos na véspera da paixão. Também vo-lo digo, nesta hora, com reconhecimento por permanecerdes fiéis colaboradores do bispo nestes tempos difíceis. Obrigado pelo vosso testemunho! Obrigado pela vossa amizade, pela vossa simpatia, pela colaboração e fadiga do vosso ministério! Abraço-vos a todos e a cada um com grande afecto! Invoquemos a Virgem Mãe: Ó Virgem Maria, Tu que pronunciaste o teu “sim” na Anunciação E o repetiste nos dias da provação e paixão do teu Filho; Tu que meditaste no silêncio do coração as palavras e as maravilhas de Deus: Faz, nós to pedimos, que o bispo e os padres da nossa diocese Testemunhem que Cristo é tudo para eles como o foi para ti. Torna-os participantes do teu afecto por Jesus, Dá-lhes o fogo ardente, apaixonado, aquele fogo Que nos permite experimentar a alegria da vida e do ministério. Pede a Jesus, ó Mãe, que em todos os pensamentos, sentimentos E obras dos sacerdotes resplandeça a luz de Cristo; Que contemplem Cristo, que falem de Cristo de tal modo Que sejam eles mesmos reflexos da beleza do Seu rosto! Ámen! Aleluia! Catedral de Leiria, 5 de Abril de 2007 † António Marto, Bispo de Leiria-Fátima