Cristo é a plenitude do homem

Catequese do Cardeal-Patriarca de Lisboa no Domingo de Ramos 1. Reflectimos, ao longo da Quaresma, nas razões do nosso acreditar, ou seja, sobre a base racional da nossa fé. Atitude verdadeiramente humana, a fé é um dom de Deus. Nela encontram-se o que de mais profundo tem a natureza do homem e a acção de Deus em nós. Ele que nos criou, acompanha-nos na busca da plenitude da vida, em cujo dinamismo se situa a fé. Este encontro do humano com o divino, exprime realisticamente o mistério do homem e realizou-se plenamente em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, encarnação da Palavra de Deus. Pela fé o homem participa de Jesus Cristo, encontro maravilhoso da divindade com a humanidade, em Quem encontra a sua própria plenitude. Jesus Cristo é o verdadeiro fundamento e a base sólida da nossa fé, em todas as suas dimensões, enquanto expressão da acção de Deus em nós e das nossas mais belas capacidades de buscarmos a verdade. Esta caminhada quaresmal só podia conduzir-nos ao encontro com Jesus Cristo, que a Liturgia contempla nesta Semana Maior, na Sua Páscoa, plenitude humana definitivamente conseguida, pela vitória de Deus sobre o pecado e a morte, no triunfo maravilhoso da vida. Como João Paulo II no início do seu Pontificado, apetece-nos exclamar, no termo da nossa caminhada quaresmal e no início da semana pascal: “A única orientação do espírito, a única direcção da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direcção de Cristo, Redentor do homem, na direcção de Cristo, Redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só n’Ele, Filho de Deus, está a salvação, exclamando como Pedro: Para quem iremos nós Senhor?! Tu tens Palavras de vida eterna”1. A Palavra eterna 2. Pedro encontrou a verdadeira razão para acreditar e ficar com Jesus: Ele é a Palavra eterna (cf. Jo. 6,68ss). Jesus Cristo é a humanização do “Logos” eterno, o Verbo divino. Ele é o pensamento divino, tornado Palavra na comunicação reveladora com os homens. E esse Verbo eterno pode entrar em diálogo com os homens porque estes participam dessa inteligência divina, foram criados à imagem de Deus. Antes de se revelar, Deus criou os homens com essa participação do Logos, que os tornava capazes de acolher a revelação. Por isso, ao contemplarmos Jesus Cristo, a primeira atitude espontânea é abrir, para O escutar, a nossa inteligência, vontade e coração, tudo aquilo que constitui a espiritualidade do homem e o torna capaz de escutar Deus. A nossa adesão a Jesus Cristo envolve, desde o primeiro momento, a nossa inteligência. A racionalidade da nossa fé enraíza no Verbo eterno de Deus, porque Ele, antes de se fazer Homem, era, desde toda a eternidade, a inteligência divina (cf. Jo. 1,1-3) e criou-nos inteligentes como Ele, que “é a imagem de Deus invisível, por quem todas as coisas foram feitas” (Col. 1,15-16). O homem foi criado como a inteligência do Universo e por isso o Verbo eterno pôde fazer-Se homem. A fé em Cristo é o encontro de duas inteligências, a humana e a divina; para o homem, criado à imagem de Deus, tudo em Cristo é inteligível. O próprio “mistério”, escondido desde todos os séculos em Deus (cf. 1Co. 2,8ss), abre-se à compreensão do homem, quando a sua inteligência se encontra com Cristo, Verbo de Deus. Porque Cristo é a encarnação do Logos eterno de Deus, Ele é a verdade e o caminho para o Pai. A verdade será sempre, no coração do homem, a irradiação da luz da inteligência divina e ao tocá-la, o homem percebe que essa verdade nos conduz ao Pai, o Deus eterno. Porque Cristo é o Verbo eterno, para acreditar n’Ele basta escutá-l’O. A Palavra escuta-se e assim gera o encontro entre duas inteligências e dois corações. “Este é o Meu Filho bem amado… escutai-O” (Mt. 17,5). Escutar Jesus é o principal caminho para o enraizamento da fé. Escutá-l’O nas suas Palavras, nos seus gestos, nos seus milagres, nos seus silêncios; escutá-l’O na sua maneira de viver e de morrer, escutá-l’O na Igreja e na maneira de estar e de a amar, ser capaz de O escutar na palavra dos seus discípulos. Escutá-l’O é aprender e isso é tarefa e dignidade da nossa inteligência. Escutando Jesus Cristo, conhecemos o Pai 3. Em Jesus Cristo a nossa inteligência abre-se ao conhecimento do insondável mistério de Deus. Talvez ainda não tenhamos percebido a radicalidade da afirmação: Cristo é o único caminho: “Eu e o Pai somos um só”; “quem Me vê, vê o Pai”, o que equivale a dizer, quem Me conhece, conhece o Pai. O conhecimento de Deus a que temos acesso, por Jesus Cristo, ensina-nos o que Deus Pai é para nós, um Pai misericordioso, que nos ama e deseja ser amado por nós, que não quer a morte do pecador, mas deseja, para ele, a vida. A nossa inteligência abre-se a esse mistério, antes de mais contemplando o que Jesus Cristo foi para Deus, Seu Pai, como Homem que é Filho: “Só Ele satisfez ao eterno amor do Pai, aquela paternidade que desde o princípio se expressou na criação do mundo… Só Ele correspondeu àquela paternidade de Deus e aquele amor, de certo modo rejeitado pelo homem”. Na obediência e no amor filial de Jesus Cristo, entendemos o mistério da nossa redenção, fruto do amor misericordioso de Deus. “A redenção do mundo, aquele tremendo mistério do amor em que a criação foi renovada, é, na sua raiz mais profunda, a plenitude da justiça num coração humano, no coração do Filho Primogénito”2. Tudo o que Deus deseja para o homem realizou-o plenamente no coração do Filho e, assim, n’Ele, podemos conhecer o insondável amor de Deus por nós. Ao contrário de todas as filosofias e sabedorias humanas que chegaram ao conhecimento de Deus, Jesus Cristo é um caminho existencial, experiencial, para chegar a conhecer Deus. Captamos o que Deus é, no que Ele faz por nós. E fez tudo isso em plenitude na pessoa do Verbo encarnado. Verdadeiramente chegar a Deus é uma “imitação” de Jesus Cristo, conhecer o que Deus é para nós, é reconhecer e contemplar o que Ele é em Jesus Cristo. Jesus disse um dia aos discípulos: “Vós chamais-Me Mestre e dizeis bem, porque o sou” (Jo. 13,13). Ele é sempre e em tudo, o nosso Mestre, o que nos ensina o conhecimento de Deus. Unindo-nos a Jesus Cristo, conhecemos o homem 4. Este é um dos aspectos mais exigentes da fé cristã: ter em Jesus Cristo a compreensão do homem. É exigente, porque toca de perto o concreto da nossa existência. Toda a aventura do conhecimento humano tem sido marcada por essa busca da compreensão do homem, do sentido da sua vida, do seu destino, da natureza da sua realização, em felicidade. Todas as antropologias filosóficas e culturais procuraram compreender o homem a partir de si mesmo. Ora Jesus Cristo aparece-nos como “o Homem”; n’Ele eu posso continuar a procurar a compreensão do homem, a partir do Homem. Ele é mais do que um modelo, ponto de referência comparativo. A fé proporciona-nos uma união vital com Cristo, como dizia Paulo: “Para mim viver é Cristo”. É da densidade dessa união que brota a compreensão de nós mesmos. João Paulo II exprimiu, assim, esta densidade existencial: “Cristo, Redentor do mundo, é Aquele que penetrou, de uma maneira singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e entrou no seu coração”. E citando o Concílio Vaticano II: “Na realidade, só no mistério do Verbo encarnado se esclarece, verdadeiramente, o mistério do homem”3. Desta compreensão do homem, em Cristo, brota o sentido definitivo da sua vida com os outros, da sua morte, do sofrimento e da dor, sobretudo do amor. Em Cristo percebemos que o homem não pode viver sem amor. Citando, de novo, a Redemptor Hominis: “O homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente, deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Deve mergulhar n’Ele com tudo o que é (…) Quando se realiza, no homem, este processo profundo, produz frutos de adoração a Deus e de profunda maravilha perante si próprio”4. Esta visão cristocêntrica do homem é a base da antropologia cristã, isto é, da doutrina da Igreja acerca do homem, fundamento da sua dignidade, da exigência ética da sua existência, do horizonte da sua plena realização. “A Igreja, que não cessa de contemplar o mistério de Cristo, sabe, com a certeza da fé, que a Redenção que se verificou na Cruz, restitui definitivamente ao homem a dignidade e o sentido da sua existência no mundo, sentido que havia perdido, em grande parte, por causa do pecado”5. Este é o contributo da Igreja para a cultura, através da evangelização: proclamar a grandeza e a dignidade do homem, recuperadas na redenção. “A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso tempo, é a de dirigir o olhar do homem e de endereçar a consciência e a experiência de toda a humanidade, para o mistério de Cristo”6. 6. Nesta Semana Pascal somos chamados a fazê-lo, através da Liturgia, na profundidade da nossa fé. Assim, cada Páscoa celebrada será redescoberta do sentido da vida do homem e da sua história. Sé Patriarcal, 1 de Abril de 2007 † JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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