Cristianismo: uma religião do sofrimento?

A experiência cristã não é uma religião do sofrimento. Isto quer dizer, em nosso entender, que o cristianismo não tem, de jure, uma doutrina, uma ‘lição estudada’ para justificar antecipadamente, e com isso legitimar, a existência do mal no mundo, da qual o sofrimento (infligido e/ou sofrido) é uma das expressões mais gritantes. Diremos mais: as religiões e doutrinas filosóficas triunfantes, que pretendem ter um conhecimento prévio, certo e claro sobre o sofrimento, legitimando-o mesmo antes de ele acontecer, são uma afronta intolerável não só para as mulheres e os homens sofredores, todos eles (e, um por todos, atente-se na figura de Job), mas especialmente para as vítimas inocentes. Creio que é mesmo uma afronta até para Deus, se é certo que temos de levar a sério (e considero que temos) de que «Deus também sofre» (F. Varillon, La souffrance de Dieu, Paris, Centurion, 1975).
A experiência cristã não é uma religião do sofrimento no sentido de que o Deus de Jesus, o Abba, o papá a quem Jesus orava, não é o Deus das religiões pagãs sedento de sangue (e nestas com excepções), que exige o sacrifício e o derrame do sangue dos seus fiéis, especialmente dos mais queridos (nem mesmo de certas imagens de Deus do Antigo Testamento; cf. Sl 116, 15) ? concepção que importa reiterar neste tempo quaresmal, muito especialmente por ocasião dos templos cheios de dolorismo comprazido e masoquista, na Sexta-Feira Santa da Paixão do Senhor, e paradoxalmente vazios na madrugada da vitória sobre a morte e o sofrimento, i.e., no Domingo da Ressurreição.
Neste sentido, podemos até questionar-nos se, por causa do diferente entendimento e vivência do sofrimento, a experiência cristã será propriamente uma religio (religião) no sentido que este termo tinha para os autores que o cunharam (por exemplo, Cícero, em De Natura Deorum): cura deorum, cuidado para com os deuses, uma relação assente essencialmente no medo e no escrúpulo. De facto, desde a noite dos tempos que a religio é expressão privilegiada de uma economia de troca ? um negotium ? segundo o qual do ut des, ou seja, eu dou para que tu me dês. Por outras palavras, eu sacrifico e reservo para os deuses algo que me é querido (o filho primogénito, as primícias do rebanho ou das colheitas, etc.) ou, no limite, quando o mecanismo de substituição sacrificial parece falhar, ofereço-me e sacrifico-me a mim próprio para assegurar o favor divino. A experiência cristã, muito especialmente a Paixão de Cristo, fazem explodir a lógica religiosa do bode expiatório, do sofrimento antecipadamente vicariante, mesmo se o cristianismo histórico, em muitos momentos e autores, interpretou certas passagens da Bíblia (v.g., Gn 3, 16-19; Mt 5, 5.10-12, entre outras) à luz de uma soteriologia legitimadora do ‘vale de lágrimas’, instrumentalizando o sofrimento para ‘comprar’ a salvação (mesmo que fosse preciso ‘forçar o martírio’, como aconteceu nos primeiros séculos do cristianismo).
Por outro lado, afirmar que experiência cristã, de direito, não tem uma justificação a priori para o sofrimento, não significa, bem pelo contrário, que ela o ignore e que, ex post facto, não lhe dê um sentido, integrando na vida a dor e o suor de todos os dias. E mesmo antes do sofrimento humano, talvez devamos meditar num dos lugares mais problemáticos da tradição teológica: a possibilidade de um pathos, de uma Paixão em Deus. Tal parece ir contra uma certa visão do divino à luz dos ditos ‘predicados fortes’: impassível, eterno, imutável, omnipotente, omnisciente, etc.. F. Varillon, a este propósito, não hesita em criticar um pensamento triunfante que se desenvolveu, “no Ocidente, segundo a lógica firme do princípio da identidade, ao abrigo das contradições, das metamorfoses e da fluidez: se Deus é eterno, é imutável; se é imutável, é impassível. (…) Dizer com São Tomás, apoiando-se na sua distinção da ‘relação real’ e da ‘relação de razão’, que a mudança está toda do lado do homem e de modo nenhum do lado de Deus, é talvez salvar o Ser, mas é também ferir o Amor. (…) Na ordem do ser, o sofrimento é uma imperfeição. Na ordem do amor, é o selo da perfeição.”
Recordemos também que já Orígenes, no âmbito de uma meditação sobre a Paixão de Cristo (Homiliae in Ezechielem, VI, 6; SC 352, pp. 230-231) afirmara que o próprio Pai não é impassível. «Qual é pois esta paixão (passio) que ele sofreu por nós? A paixão da caridade (caritatis est passio). E não é verdade que o próprio pai, Deus do universo, “cheio de indulgência, de misericórdia” e de piedade, sofre de algum modo (quodammodo patitur)? (…) Deus portanto toma sobre si (supportat) a nossa maneira de ser, como o Filho de Deus toma (portat) as nossas paixões. O próprio Pai não é impassível (ipse Pater non est impassibilis). Se lhe pedimos, tem piedade, compadece-se e experimenta a paixão da caridade (…).» Esta «é, sem dúvida, uma das páginas mais cristãs e mais humanas que temos», afirma Henri de Lubac. À luz de um Deus que sofre e de um sentido de Encarnação que prolonga no tempo a história eterna do amor Deus, o sofrimento humano não fica justificado a priori, não fica diluído numa imensa teodramática, mas pelo contrário ganha outra densidade como pro-vocação concreta i.e., um convite menos ao nosso pensamento que à nossa acção. Estava nu, estava doente, estava preso…: “o que fizeste ao mais pequenino dos meus foi a mim que o fizeste.” (Mt 25, 40). Perante o sofrimento, ante a ‘carne viva’ na clareira do mundo, impõe-se sempre uma reserva fundamental. O crente não tem que justificar Deus. Deve apenas poder dizer: “Eu sei que Deus não quer isto, mas não sei porque é que isto aconteceu”.
«Pathos mathei» / «Aprende-se pelo sofrimento»: era esta a lição maior da tragédia grega, que depois foi racionalmente legitimada pelas múltiplas metamorfoses das pedagogias oficiais do Ocidente: a filosofia, a política, o direito, a teodiceia… Importa reiterar, à luz do Verbo suspenso da Cruz, que uma diversa leitura daquela lição sapiencial não nos dá nenhum conhecimento prévio, muito menos justificativo, sobre o sofrimento, mas colhe-o apenas ex post facto, na sua nudez, para o integrar e o transfigurar em gestos de bondade. Mas isso, ao contrário do que certo cristianismo histórico fez, jamais pode ser preceituado na segunda pessoa. O sentido último do sofrimento só pode ser testemunhado na primeira pessoa. É esse, creio, o sentido da Paixão do Verbo.
José Rosa, Professor de Filosofia da UBI

Nota – No ano passado pediram-me este texto sobre o sofrimento. Hoje escrevê-lo-ia bem mais curto e com outras tintas… A dor e o sofrimento não cabem em palavras na terceira pessoa, mesmo as mais eruditas e bem-intencionadas. De nós pedem antes gestos concretos de bondade, de generosidade, de brandura. Só o sofredor, o homem das dores, a *mater
dolorosa*, os vindos da grande provação, estão capazes de falar do sofrimento. A maior parte não o faz. Escutemos o silêncio. Todas as outras palavras são quase obscenas.

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