Cristãos não podem ser «parte menor» na Terra Santa

APresença do patriarca latino de Jerusalém, D. Fouad Twal em Portugal, para presidir às cerimónias de Fátima, motiva uma análise à conjuntura social e religiosa do Médio Oriente

A presença do patriarca latino de Jerusalém, D. Fouad Twal em Portugal, para presidir às cerimónias de 12 e 13 de maio em Fátima, motivou uma análise à conjuntura social e religiosa do Médio Oriente, com a participação do General Valença Pinto e do lugar-tenente da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro, Gonçalo Figueiredo Barros

 

Agência ECCLESIA (AE) – Esta problemática da perseguição aos cristãos tem de se relacionar com a Primavera Árabe, com todos os acontecimentos que estão a ocorrer no Médio Oriente. Está em curso uma limpeza étnica dos cristãos?

Valença Pinto (VP) – Eu não diria que está em curso objetivamente uma limpeza étnica dos cristãos no Médio Oriente, o que está em curso, no meu entendimento, é uma completa negligência, um completo esquecimento em relação aos cristãos do Médio Oriente.

Provavelmente porque o problema do Médio Oriente, que é um problema tão importante, pesado e complicado, como nós todos sabemos, se transformou de uma forma muito redutora, numa questão entre israelitas e palestinianos, entre judeus e muçulmanos.

Evidentemente não pode ser isso, é isso mas tem de ser mais do que isso. Resumido a isso, os cristãos ficaram esquecidos, ficaram numa posição de subalternidade reforçada, árabes cristãos entre árabes muçulmanos, árabes entre judeus, e foram vítimas das oposições entre uns e outros.

Foram vítimas também, em tempos mais recentes, das oposições entre sunitas e xiitas, em alguns casos com variantes, caso dos alauitas na Síria, mas não há objetivamente uma limpeza étnica nesse sentido.

Há uma grande negligência, e particularmente pelo lado de Israel, verifica-se um grande somatório de práticas discriminatórias muitas vezes de pura natureza administrativa mas que são discriminatórias e que efetivamente convidam ao êxodo que se tem verificado e que é absolutamente deplorável.

 

AE – Como observa estes acontecimentos que têm como consequência a fuga de muitos cristãos do Médio Oriente?

Gonçalo Figueiredo Barros (GFB) – Para responder a essa pergunta fazia uma citação do Papa Francisco por ocasião de uma receção que fez aos membros que integraram a Assembleia da Congregação para as Igrejas Orientais no final do ano passado.

Ele referia que suscitam grande preocupação as condições de vida dos cristãos, que em muitas partes do Médio Oriente sofrem de maneira particularmente forte perante as consequências das tensões e dos conflitos em curso.

Mencionou expressamente a Síria, o Iraque, o Egito e outras áreas da Terra Santa. E mais adiante faz um apelo a que se respeite o direito de todos a uma vida digna e a professarem livremente a própria fé.

Não nos resignamos a pensar o Médio Oriente sem os cristãos, que desde há dois mil anos ali professam o nome de Jesus, inseridos como cidadãos de pleno titulo na vida social, cultural e religiosa das nações a que pertencem.

É justamente este o ponto fulcral da preocupação que existe em apoiar os cristãos da Terra Santa. Os cristãos da Terra Santa estão instalados naquela região há dois mil anos, têm sido vítimas de vários conflitos que lhes são alheios, não só na Terra Santa como no Médio Oriente, em geral.

Recrudesce os atentados e as perseguições aos cristãos no Médio Oriente, a questão da Síria tem sido dramática, há um milhão de refugiados sírios na Jordânia neste momento, só para se ter uma ideia.

Uma das visitas que o Papa Francisco vai fazer proximamente, ainda este mês à Terra Santa, vai ser a visita a campos de refugiados do Médio Oriente, mas não só da Síria. O Iraque tem quinhentos mil refugiados em campos também na Jordânia, para não falar nos palestinianos.

Os palestinianos desde há muitas décadas têm fugido para a Jordânia e têm sido abrigados na Jordânia e hoje constituem uma população maioritária no próprio país.

A posição da Igreja Católica tem sido muito clara nesse sentido de apoiar todas estas comunidades que estão a ser vítimas deste contexto muito complicado, em que há um sofrimento real, diário, obstáculos de toda a natureza.

Aquilo que nos parece mais elementar não é observado na Terra Santa nem no Médio Oriente, o simples facto da pessoa ter direito ao trabalho e poder ter um livre acesso ao trabalho é-lhes vedado, para além de todo o outro tipo de perseguições.

É neste contexto, de facto, que a Igreja tem atuado, e particularmente a Ordem do Santo Sepulcro tem atuado no sentido de apoiar os projetos que o patriarca latino de Jerusalém. Noventa e seis por cento dos projetos do Patriarcado Latino são financiados pela Ordem.

 

AE –A promessa de uma consolidação democrática nalguns países acabou por nunca se atingir, provocando até que as partes em fratura se acentuassem…

VP – Certamente que sim, e é em parte por isso que se verifica o êxodo que o doutor Gonçalo Barros acabou de referir, e que dificilmente será travado ou invertido este sentido de saída das pessoas se tudo nos parecer tratável na perspetiva de é preciso reconhecer em simultâneo o direito à existência livre, independente e segura de Israel e Palestina.

Certamente que isso é indispensável, mas não pode acontecer que este Israel e esta Palestina, cuja existência livre, segura e independente nós desejamos, sejam percebidos como Estados homogéneos quer no sentido étnico como confessional.

Um e outro são Estados de várias comunidades, e entre essas comunidades estão os cristãos, estão no fundo pessoas para as quais é completamente idêntico o plano de exigência em matéria de direitos, liberdades e garantias.

Essa é a volta que tem de ser dada, certamente a procura de uma solução política, mas por mais que a política às vezes esteja distante disso, uma solução política que não pode subalternizar ninguém, e por isso tem de procurar assentar em princípios, valores e critérios de ordem ética e moral, em que ninguém seja discriminado.

E aí cabe necessariamente um papel potencialmente muito grande à Santa Sé, não apenas à Santa Sé mas certamente à Santa Sé, tanto no plano da pastoral como no plano da ação diplomática.

Agora os cristãos não podem é ser parte não existente ou parte menor. Ninguém é menor, nenhuma pessoa é descartável.

 

AE – O conflito antes de ser religioso não é político?

VP – É certamente, mas o que nós não podemos ignorar é que faz parte desse conflito político um grupo chamado cristãos, que existe de um lado e existe do outro, como há árabes em Israel e judeus na Palestina.

É isso que tem de ser alterado, essa oposição definitiva entre judeus e muçulmanos a qual faz desaparecer a presença cristã. Como foi muito bem referido, não pode ser negligenciada, como li numa frase muito interessante, a Terra Santa não pode ser um museu da história cristã, tem de ser um lugar de vivência cristã, os cristãos estão lá há dois mil anos.

Mas nós estamos numa época em que a segurança dos indivíduos não poder ser subalternizada em relação à segurança dos Estados, e é isso que é preciso ter presente.

 

AE – E é o que está a acontecer naquele território?

VP – Não só ali mas também ali e é isso que é preciso certamente inverter e alterar.

 

AE – No caso dos cristãos da Terra Santa, eles estarão a ser vítimas por parte da comunidade islâmica, sendo considerados infiéis, e por parte também da comunidade judaica, pelo sentimento anticristão que pode estar em crescimento. Duplamente vítimas?

VP – A primeira vitimização é a negligência a que são sujeitos. Mas depois efetivamente assim é, no caso do direito ao trabalho, como foi referido, as dificuldades de vida quotidiana, marcando itinerários específicos que tornam muito difícil o viver quotidiano das pessoas, imaginando projetos urbanísticos em zonas tradicionalmente de residência cristã, o que só tem paralelo com a trágica política dos colonatos, tudo isso são formas de dificultar a vida das comunidades cristãs.

Como é uma forma de dificultar a vida às comunidades cristãs a criação de alguns entraves à ação de organizações de matriz cristã muito forte e muito importantes na região, as organizações diocesanas, as organizações afins, de que a Ordem do Santo Sepulcro é um exemplo.

Ou outras organizações já mais da sociedade civil, lato senso, como sejam as escolas, e nelas sobreleva a Universidade de Belém ou como seja a Pontifícia Missão para a Palestina, basicamente orientada para o apoio humanitário, cultural, económico e social aos palestinianos.

Tudo isso é tornado difícil e quando tudo é tornado difícil as pessoas, que ainda por cima têm de conviver com a violência trágica, saem da maneira como têm vindo a sair.

É muito difícil dar valores exatos, porque a dinâmica é de tal maneira grande, no sentido negativo, que é muito difícil ter valores seguros acerca deste êxodo que se constata. Mas os números que com alguma segurança se encontram mostram reduções absolutamente aflitivas, com comunidades que representavam vinte por cento há quarenta anos e que hoje representam dois, três por cento.

E a ideia que se tem, perfeitamente assumida, é que hoje há tantos cristãos residentes no Médio Oriente como há cristãos do Médio Oriente residentes em diáspora, sobretudo na América Latina, Brasil e Argentina, e também na América do Norte.

Tem havido algum movimento de emigração cristã, em particular para Israel, vindos de outros países, Roménia, Índia, as Filipinas, Etiópia e vários outros, e isso de alguma maneira equilibra os contingentes quando se faz estatística mas não equilibra o problema em si mesmo, de modo algum.

 

AE – A Ordem do Santo Sepulcro tem sentido esta dificuldade em atuar, em fazer chegar as ajudas, por parte da comunidade internacional, à Terra Santa?

GFB – Os donativos que a Ordem dá normalmente são canalizados para Roma e Roma, que aprova os projetos que são apresentados pelo patriarca latino, canaliza esses donativos para cada projeto que depois fiscaliza e acompanha.

Nesse aspeto, dos movimentos da Ordem e do Vaticano para a Terra Santa, não há problemas. Os problemas são mais o que é que os cristãos do Médio Oriente esperam do Ocidente. E o problema põe-se aqui.

Nós sabemos que os cristãos são hoje o grupo religioso mais perseguido, há duzentos milhões de cristãos em todo o mundo que são perseguidos ou que não exercem livremente o seu culto religioso.

Mais de dois terços das nações no mundo não criam espaços de liberdade religiosa para os cristãos, são impressionantes estes números, e isto naturalmente tem reflexo na maneira como os países e o Ocidente que tem denegado muito os seus valores cristãos, como é que os países encaram a situação dos cristãos na Terra Santa e no Médio Oriente em geral.

 

AE – Nesse contexto o que é que de facto o Ocidente pode fazer pelos cristãos da Terra Santa?

GFB – Não resisto a ler uma citação que é tão impressionante que eu não queria deixar de ler. O bispo maronita, monsenhor Bechara Rai, à pergunta de ‘que esperais do Ocidente’ respondeu só isto: Pouca coisa, os países ocidentais olham antes de tudo para os seus interesses económicos e políticos, enquanto a comunidade internacional afasta o seu olhar dos problemas dos cristãos do Médio Oriente.

E isto representa um bocadinho do que se passa, se houvesse mais preocupação na salvaguarda e na preservação dos valores perenes, culturais e morais, o mundo certamente arranjaria soluções para que os problemas que existem no Médio Oriente fossem resolvidos.

 

AE – O Ocidente não estará preocupado com os valores, com os cristãos e com as pessoas em geral na Terra Santa, mas terá permanentemente um papel de intervenção naqueles conflitos, nomeadamente pelo fornecimento de armas. Está agir na via contrária, precisamente?

VP – Não são as armas que fazem a via contrária, o que faz a via contrária ou a via boa é a vontade das pessoas, e a boa ou pior leitura que fazem da situação, exatamente o que o doutor Gonçalo Barros acabou de referir.

 

VP – Estamos distantes no Ocidente e estamos distantes em todo o mundo, mas a nossa cultura e civilização torna-nos mais culpados, nesse sentido estamos distantes de prestar atenção aos valores que são importantes de observar, e estamos à procura apenas de uma solução supostamente mágica e um pouco constituída pela via mecanicista, do litígio entre uns e outros.

Por essa via não se vai porventura chegar a lado nenhum, e eu aliás costumo pensar e dizer que não há solução para a questão do Médio Oriente, no sentido de uma solução tranquilizadora e definitiva, tanto quanto a História nos permite a ideia de definitivo, e o que há é que encontrar o melhor modus vivendi possível.

E esse ‘modus vivendi’ só pode assentar em acomodação, e não pode ser acomodação entre estes e aqueles, tem de ser entre todos. E eu vejo nessa acomodação correta entre todos uma base virtuosa para a procura de uma melhor solução política.

Agora o Médio Oriente é uma zona em que é impossível aos grandes poderes do mundo deixar de estar presentes e ativos. Passam-se lá, ou entrecruzam-se lá linhas de tensão fundamentais para a afirmação da União Europeia, por exemplo, para o combate ao radicalismo islâmico, para a segurança energética, para a questão importantíssima da proliferação nuclear, tudo isso é importante mas nada disso é abordável de uma forma séria e sustentável se as pessoas, e em particular as pessoas locais, forem desconsideradas no quadro da busca de melhores soluções.

 

AE – O Papa Bento XVI em maio de 2009 defendeu em Israel o direito a Israel existir e também reconheça-se, afirmou, que o povo palestiniano tem direito a uma pátria independente. Resolver a questão dos Estados não bastará?

VP – Eu acho que é um passo absolutamente indispensável, o que eu acho que não será satisfatório e suficiente é se disser assim ‘Israel é um Estado de judeus, contra estes e aqueles e a Palestina um Estado de muçulmanos, contra estes e aqueles.

Não, Israel e Palestina não se podem perceber a eles próprios e não podem ser percebidos pelo mundo, em particular pelo Ocidente que tem uma matriz que nós todos praticamos e devemos observar, como entes puros neste sentido, como entes homogéneos nem no sentido étnico nem no sentido religioso.

 

AE – Em cada um deles há diferentes grupos

VP – Exatamente e esses grupos têm de poder viver em harmonia e sob a responsabilidade do mesmo Estado.

AE – O que tornará mais difícil resolver a questão 

VP – Certamente, mas julgo que só é essa a via, a outra via, o mais que pode, não vejo, e em particular no tema que aqui nos motiva hoje, na manutenção desta dicotomia e deste antagonismo fundamental entre israelitas e palestinianos, judeus e muçulmanos, e só visto a essa luz, eu acho que o máximo a que se pode aspirar é à preservação da presença cristã e isso não basta, com certeza.

 

AE – Que expetativa tem a Ordem do Santo Sepulcro para a visita do Papa Francisco, até para passos que se possam dar na resolução destes problemas?

GFB –. Vamos ter a presidir às cerimónias de maio em Fátima ao patriarca latino de Jerusalém, que é a figura máxima da Igreja Católica na Terra Santa. No fundo personifica, de certa maneira, a presença da Terra Santa na Terra de Santa Maria, concretamente esta ligação de Portugal à Terra Santa e da Terra Santa a Portugal. É um feito histórico, uma circunstância histórica, porque nunca aconteceu uma situação desta.

O patriarca latino veio a convite de D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, e vai transmitir de viva voz as preocupações que na Terra Santa, no local onde tudo se passa, e tem sido o objeto desta nossa conversa também, as particulares situações de dificuldade que os cristãos da Terra Santa atravessam.

Transmitir também uma mensagem de esperança para a sensibilização dos portugueses e do mundo ocidental para o apoio que vai sendo necessário.

Não deixa de ser extraordinária esta presença, numa semana que medeia entre a presença do monsenhor Fouad Twal, patriarca latino de Jerusalém, em Portugal, e a receção que ele irá dar ao Papa Francisco em Jerusalém, em Belém e na Jordânia.

Mas de facto nós sabemos que Portugal, com toda a sua vocação missionária e tradição, pode ter aqui um papel também importante de ser um espaço para a abertura e divulgação.

Eu só queria referir aqui uma outra situação que se relaciona também com esta: há dois, três anos, esteve em Portugal a convite da Fundação Ajuda a Igreja que Sofre o atual patriarca da Babilónia, D. Louis Sako.

E à pergunta que lhe foi feita, idêntica à sua, quando lhe pediram para ele dizer o que é que precisa do Ocidente para ajudar os cristãos que estão a sofrer no Iraque, ele disse com um sorriso nos lábios uma verdade surpreendente. Nós só precisamos que se lembrem de nós.

 

AE – Nesta visita do Papa que passos podem ser dados para essa reconciliação entre os vários grupos, os vários povos que habitam aquela terra?

VP – À Santa Sé e ao Papa cabe uma missão de pastoral, de diplomacia e de estímulo. A missão pastoral não tenho autoridade para a comentar, mas pode-se perceber que é aquele inerente à sua alta dignidade e função.

A missão de diplomacia, que seria aquela para a qual eu me atreveria um pouco a olhar, tem que ver, embora pareça paradoxal, com a afirmação destes valores, princípios, destas exigências no que toca ao respeito pelas vidas, pelos bens, pelas liberdades e pelos direitos das pessoas.

E depois uma posição de exigência em relação por exemplo à questão de Jerusalém. Jerusalém não pode ser entendida como uns e outros procuram entendê-la. Israel como a sua capital e terra, onde estão os seus órgãos de soberania.

Do lado dos palestinianos, uma reivindicação sobre pelo menos a parte oriental da cidade, e da parte dos cristãos uma tentativa de existir num sítio onde hoje são quase irrelevantes, do ponto de vista demográfico, embora a relevância não possa ser medida, de todo, por esses parâmetros.

Eu acho que a Santa Sé, de resto em linha com o que é a posição da comunidade internacional, tem de se manter fiel e ativa na defesa de Jerusalém como ‘corpus separatum’, como lhe chamou as Nações Unidas, quando em 1947, mais ou menos, regulou a partilha da Palestina.

E é um pouco na linha disso que todas as representações diplomáticas em Israel estão em Telavive, inclusive a do Vaticano e a portuguesa, e isso tem de ser uma linha de exigência.

Porque realmente Jerusalém, e o patriarca latino de Jerusalém há pouco tempo invocou, é uma figura simbólica apenas mas com grande sentido, Jerusalém pode, do ponto de vista simbólico, dos valores, dos princípios, pode e deve ser encarada como uma capital da humanidade.

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Agência ECCLESIA

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