Contracultura ou o difícil sim da pessoa à pessoa

ContraCultura, o que é isso? Hospitalidade ou o difícil sim de pessoas a pessoas. Estou muito contente pelo consenso da Comissão ter decidido este Fórum de teor provocador e refrescante . Bem-vindos todos. Vamos então procurar a contracultura de Hospitalidade inspirando-nos no carisma de hospitalidade sem fronteiras de S. João de Deus. Bem hajam pela vossa presença! E passo à minha provocação. A contracultura de hospitalidade só poderá ser conseguida com mais competências e categorias profissionais, uns milhares delas… Penso até que será preciso chegar a ter profissionais só de vassoura e outros só de esfregona, uns para lavar a cara do acolhido outros para lavar os pés, outros dar o banho todo; um para dar o pão outro a água, estes para os sentar outros para os levantar, etc. E todos a proclamarem: “isso não me compete…” E “isso” muitas vezes seria a hospitalidade! Por alguma coisa acontece que Portugal tem cerca de dez vezes mais categorias profissionais que países desenvolvidos como a Suécia! Vejamos então. Será possível uma contracultura de hospitalidade ou acolhimento em que pessoas acolhem pessoas? De pessoas no seu todo a acolher pessoas no seu todo? Os dicionários dizem que contracultura é aquela que se procura contrapor como alternativa a outra decadente e obsoleta. Dei por mim a pensar que este sentido equivale ao sentido nobre de profecia proposto pelos biblistas. Nunca se foi tão anti-alguma coisa e nunca se foi tão conformista com alguma cultura do politicamente correcto. Conformistas, hoje? Que ideia, se todos até vestem jeans… Estamos aqui um pouco como aquele coleccionador que passou pela cidade em ruínas e viu cacos de um vaso e começou a apanhá-los para os colar porque reconheceu neles o que restava de uma peça de inestimável valor. Ou estamos aqui como um oleiro que pretende fazer ele mesmo o vaso mais valioso jamais visto? Estamos, é certo, como há centenas de anos a viver a incapacidade persistente de conseguir harmonizar a liberdade pessoal com a ciência e a razão. A irracionalidade do homem atrapalha tudo e torna difícil uma contracultura que valha a pena. Faltam pessoas inteiras, unificadas. Deixem-me dizer isto de forma mais directa. O homem de um ponto de vista de juízo, razão e liberdade está sempre tramado e trama sempre o seu próximo. Vejamos. Quando os meios faltam o homem morre e deixa morrer, à fome e à mingua de tudo, os seus irmãos, aos milhões. Mas quando vive na abundância e na fartura de quase tudo, o homem mata-se com essa fartura por excesso de consumo de tudo o que dispõe. Um terço dos determinantes de doenças e mortes prematuras são os comportamentos irracionais de consumo. Ontem morria-se de fome, hoje de excesso de comer e beber, de consumir demais, ao mesmo tempo que se deixa continuar a morrer milhões à mingua. Pelo meio está a liberdade, (que palavra maltratada!) a (falta de) vontade, a irracionalidade e a incapacidade de se governar. E ainda nos vamos consolando que somos seres inteligentes! E livres! Mas atenção: Sem razão, não. Só com razão também não. Sem liberdade e vontade, não. Só com liberdade e vontade, também não. Vivemos um quebra-cabeças. Nós os humanos dispomos de uma vontade dividida que S. Paulo e Santo Agostinho nos testemunharam. Temos uma liberdade ferida mas não a podemos dispensar. Tentemos pelo menos remendá-la. Com quê? Somos racionais mas nem por isso; somos livres mas nem tanto, temos, por vezes, uma vontade boa, mas não lhe obedecemos. Como vamos ser capazes de uma contracultura de hospitalidade que faça alguma diferença? Há milhares de anos que andamos nisto e olhem o panorama! Um terço da humanidade ainda não é alvo de uma cultura de hospitalidade! Aí está, se houvesse uma contracultura que harmonizasse a liberdade com a vontade, a boa, a razão e o comportamento, seria um produto a comprar, e de primeira necessidade. Tantos supermercados e tanta falta faz esta contra-cultura e nenhum oferece esse produto!. Francamente! Será que o nosso Fórum tem o produto disponível? Espero que sim. Mas não é garantido que terá muita procura. Por vezes (vezes demais) o homem gosta de se comportar irracionalmente e até com libertinagem em vez de liberdade. E egoísmo! Já um famoso filho pródigo assim fez. E o seu exemplo é muito seguido. Já repararam que os melhores produtos são os mais sujeitos a contrafacção. Assim acontece com o amor, a liberdade, a verdade e o bem. E já agora a democracia em que muitos são mais iguais que outros, como na república dos porcos. Uma boa percentagem do que se apregoa por aí com essas marcas devia ser apreendido e destruído e substituído porque está a prejudicar o melhor da humanidade. Infelizmente não há fiscais suficientes! Nem produto de alternativa suficiente. Reparem. Se os cientistas ainda não conseguiram unificar o campo das ciências físicas, muito menos os homens conseguiram unificar-se a si mesmos para dar corpo a uma contracultura de hospitalidade. Um pequeno parêntese. Nas ciências Newton com as leis da gravitação universal deu um passo colossal, Einstein com a teoria da relatividade pareceu abalar tudo mas deixou tudo ligado pelo determinismo (logo irresponsabilidade) e deu grande confiança às certezas da ciência mas só até que surgiu a provocadora teoria quântica. E paz ainda não voltou às ciências. Os princípios da incerteza e das probabilidades desarrumam tudo e parecem querer dar liberdade e consciência às coisas e desarrumar tudo. Têm sido um quebra cabeça as relações recíprocas desta duas ciências, mas isso não tem impedido os dogmas científicos de ciência mal fundamentada. Para complicar as coisas surgiu a “teoria do cordel” ( string theory” e a mega teoria do cordel que põe centenas de físicos atarefados a provar hipóteses, entre as quais uma possível dezena de universos com leis científicas privadas sem aplicação nos outros. Mas nada disto poderá ser irracional ou absurdo, ou então os cientistas seriam os primeiros a passar por estúpidos. Mas a racionalidade sozinha não gera uma contracultura como a humanidade precisa. E a irracionalidade ainda menos. Se é assim nas ciências físicas, nas ciências humanas nem vale a pena falar: algumas das suas evidências mudam todos os dez ou vinte anos e em cada onda só valem as conclusões politicamente correctas e com “vested” interesses. Mas os cientistas e os técnicos nem por isso desistem e lá vão de ideologia em ideologia, de evidência em evidência, de preconceito em preconceito, de contrafacção em contrafacção, de código em código, tentando o melhor que podem. E nós para aqui a tentar uma teoria unificada de hospitalidade com as coisas da liberdade, razão, das ciências e da irracionalidade omnipresente. Só estes ingredientes, contudo, não bastam para a contracultura de Hospitalidade que queremos. Como harmonizar e unificar a razão e a ciência, a liberdade, sem a verdade e o bem? E quem é que já harmonizou o seu bem com o bem dos outros, de todos os outros? Os bens individuais e individualistas estão por aí a medrar à mistura com todo o tipo de comportamentos egoístas, corrupções e discriminações. E também à mistura com experiências de liberdade, de dependência e libertinagem. A contra-cultura que procuramos precisa de uma visão e uma praxe diferente e partilhada por muitos. Mas qual visão? Há por aí quase tantas visões sobre cada assunto quantas as pessoas e grupos organizados? E as praxes são legião? E cada um pretende decidir que a sua é a boa ou que todas são nem boas nem más. E contudo sabemos que as visões, as praxes, as opiniões não podem ser todas do mesmo valor, todas irracionais, todas verdadeiras, todas boas, mesmo quando lhe chamamos “boas práticas”. Harmonizar e unificar o racional, a liberdade, o verdadeiro e o bem numa visão e numa praxe poderia vir a dar origem a uma cultura que fizesse a diferença. Mas harmonizar e unificar, como? Nos livros? Nos discursos? Na arte? Deixo a pergunta para todos. O Samaritano que ia de Jerusalém a Jericó teve uma visão diferente da do sacerdote e do levita. E teve uma praxe diferente da dos outros dois. Foi racional e científico? Ou foi irracional, estúpido, incompetente? Teve um comportamento absurdo ou deu sentido à sua vida ou simplesmente à vida? Tinha a qualificação profissional adequada ou eram os outros que a tinham? Foi conformista ou anti-conformista com a cultura vigente? E a religião, qualquer religião, será precisa para uma visão e praxe desta contracultura diferente? Ou será precisa uma religião de fé muito especial com profecia para dar essa visão e levar a esta praxe? E será precisa a unificação e harmonia pessoal coerente nos criadores dessa contracultura? Uma citação de Albert Einstein que me chegou há dias à máquina dizia: “É mais fácil desintegrar um átomo que desintegrar um preconceito!” O preconceito, o egoísmo, o ódio, a mentira, desarmonizam as pessoas. E ás vezes até têm rótulos científicos. Só geram culturas de in-hospitalidade. A contra-cultura que se precisa de hospitalidade universal tem de desintegrar muita desarmonia, “peneirice”, preciosismos “senhoriais”, de muitas atitudes de “isso não me compete” e rigidez laboral. Portanto, sem razão, não; sem ciência não; sem liberdade e vontade, não. Também sem competência, não; sem uma visão e praxe, não. Mas só com tudo isso também ainda não. Tudo isso unificado e harmonizado com o verdadeiro e o bem de todos bastará? Harmonizado, como? Em discursos, livros e parlamentos, com leis e regulamentos? Já Mahatma Gandhi deu a entender que se isso bastasse estava tudo resolvido há muito. Faltam as pessoas com essa unificação de visão e praxe, essas pessoas verdadeiras, boas, com fé no Outro e em cada outro, com uma polivalência e flexibilidade chocantes para as culturas de visões e práticas conformistas. Faltam pessoas unificadas, com competência, razão, saber fazer, mais que saber dizer, e mais com essa competência maravilhosa do coração, do bem-fazer e do fazer bem. Infelizmente o que há mais por todos os lados são pessoas fragmentadas, fracturadas que a própria cultura de hospitalidade têm por missão re-unificar e harmonizar. Numa palavra pessoas do todo, não partidas ou fragmentadas, como tantas que em equipas e organizações perderam a visão do todo da pessoa e se passeiam pelas pessoas sugerindo a todos que acolham a sua “senhoria” e alto estatuto de competência, e não a senhoria dos acolhidos, como nos falam os compromissos e regras de hospitaleiros de há séculos. Uma contracultura de hospitalidade precisa com urgência pessoas unificadas com visão do todo de cada pessoa, sensíveis a todas as suas dimensões e interventivas para lhes responder. Precisa-se mesmo de transformar a atitude holística em competência holística não para este ou aquele, mas para toda a pessoa envolvida na contracultura da hospitalidade. Não é só a hospitalidade que deve ser holística; a pessoa do hospitaleiro ainda precisa de ser mais holística. Bem. Se só com pessoas unificadas poderemos ter esperança de uma contra-cultura de hospitalidade para o século XXI, teremos que as encontrar e sermos do seu número. Vou terminar mas não sem antes indicar um ponto importante. A autêntica contracultura que procuramos só pode ser uma pessoa em que a razão, a liberdade, a verdade, bondade, hospitalidade misericordiosa estão unificadas com excelência. E aquelas outras pessoas, já harmonizadas pelo acolhimento dAquela, e que com ela se identifiquem e unem na visão, praxe e vida de hospitalidade. Pessoa assim só conhecemos uma. E muitos de nós acreditamos não apenas na sua excelência mas na sua divindade. É a pessoa de Jesus Cristo. Ele é a contracultura que precisamos. E à volta dele e unidas a ele conhecemos muitas proeminentes pessoas que foram e continuam a ser acolhidas pela dimensão e abraço de hospitalidade universal e misericordiosa do próprio Cristo e se tornaram ou tornam sempre mais hospitaleiras. Claro que é uma hospitalidade aberta à fraternidade com Cristo em que o Pai é meu e do outro, de todo o outro. E em que em que Jesus é Mestre e lava os pés aos apóstolos e manda fazer o mesmo. Uma contracultura a toda a linha contra toda a espécie de “peneirices”. A contracultura da hospitalidade de Jesus Cristo actua não tanto enquanto está nos livros e discursos mortos mas enquanto é incarnada em pessoas. Deixem-me aludir, como meros exemplos, a algumas delas e que todos conhecem. Santo Agostinho e S. Bento da contracultura à cultura romana em derrocada e do caos das invasões dos bárbaros que responderam com o amor fraterno e uma hospitalidade monacal, S. Francisco o da contracultura de linguagem nova de amor universal sem estigma nem sequer para os animais. Podia referir-me a outra grande hospitaleira, a Madre Teresa de Calcutá, de todos conhecida, mas termino com Claro, S. João de Deus é e continua a ser um marco de contracultura de hospitalidade universal e contagiante e este Fórum foi programado para a sua cultura hospitaleira hoje ser ainda mais alternativa profética à cultura de morte e de decadência que polui os espaços e os corações. Se não vos choquei fico um pouco triste Temos poucos a dizer, com palavras e a prática quotidiana, que o rei das nossas culturas, do politicamente correcto, e da adaptação egocêntrica, vai nu. E, incrível, muitos continuam a admirar as suas ricas roupagens! Forum: Hospitalidade, a Contracultura Lisboa, 29 de Setembro de 2006 Irmão Aires Gameiro, sac. OH

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