Notas Conclusivas No final do Congresso “Santo Agostinho: o homem, Deus e a cidade”, puderam ser sublinhadas, à maneira de Conclusão, algumas ideias que haviam surgido ao longo dos três dias. Santo Agostinho como homem continua a ser, para hoje, um modelo da procura da verdade e da abertura à graça. Porque se converteu a Deus, converteu-se à sabedoria. As questões sobre as relações entre a natureza e a graça que o “Doutor da Graça” suscitou continuam a desafiar a reflexão teológica moderna e a servir-lhe de inspiração. A posição que, no século V, tomou não foi “pessimista”, mas uma aguda percepção das dificuldades em que o próprio homem pecador se coloca quando se afasta de Deus. A estas, porém, é o próprio Deus que responde pela oferta de uma nova criação em que, na Igreja e mediante os sacramentos, o homem é continuamente renovado e conduzido à sua plenitude. Para o bispo de Hipona, Jesus Cristo é o mediador que o Pai envia para nos reconduzir, como Filho e como Verbo, à casa paterna. Uma mediação que se realiza pelas Escrituras, cujo sentido profundo espiritual o Verbo feito carne ilumina, revelando assim o que significam, nesta nova ordem da graça, todas as realidades criadas. Nas Confissões, o percurso do pecador convertido é descrito como a fuga da casa do Pai (aversio a Deo) a que se segue, em virtude da “humilhação do Verbo incarnado” e da Sua glorificação no Espírito Santo, a conversão a Deus (conversio ad Deum). Na acção divina da história da Salvação (oikonomia) se manifesta o Deus Trindade, restaurando na Igreja o “homem interior”, a alma humana, na sua natureza de “imagem de Deus”. Deste modo, é possível tomá-la como base da analogia que, por excelência, nos permite vislumbrar o Pai, o Filho e o Espírito Santo reflectidos, como Trindade una, no interior do homem. Para Santo Agostinho, feliz é aquele que em Deus encontra o seu fim último, saciando o seu desejo. Mas é também aquele que sabe usar dos bens criados ordenando-os ao Sumo Bem. A reflexão agostiniana pode iluminar questões do homem moderno: o seu desejo de felicidade, as desolações das suas debilidades, as dificuldades de viver a fé num contexto de confronto com outras convicções, e as tensões entre solidão e comunhão. “Se vês o Amor, vês a Trindade”: o amor é a via para o conhecimento da Trindade. Face à consciência moderna da fragilidade das realidades objectivas em que vivemos, o mistério trinitário divino vem revelar-nos que o fundo do ser é a comunhão pessoal. Perante transcendências que são falsas, a sabedoria da fé ensina-nos a conviver com o respeito pelos outros e suas diversas convicções, mantendo a própria. Santo Agostinho soube usar de linguagem e pensamentos correntes no seu tempo e, ao mesmo tempo, superá-los pela perspectiva cristã da pessoa, do amor divino na comunhão trinitária, da relação mútua e do dom recíproco. Retomou, nomeadamente, o tema filosófico e bíblico das duas cidades, interpretando-o no sentido de uma visão da história que permite tornar a fé cristã em crítica da racionalidade política. O que julga a história é o fim para que se encaminha. Ao instituir a Ressurreição como sua finalidade, Jesus Cristo dá-lhe o sentido de uma peregrinação para a plenitude da paz final. A cidade de Deus surge com a radicalidade utópica de um ideal que, sendo humanamente impossível, se torna possível pela graça de Deus: “a medida do amor é o amor sem medida”. Um povo é, assim, um “grupo de seres racionais, ligados pela posse harmoniosa das coisas que amam”. A dupla pertença (à cidade de Deus e à cidade terrena) dessacraliza as instituições sociais e políticas. A legitimidade destas terá de definir-se pela sua referência à justiça, a ser realizada plenamente no final da história. A Jerusalém celeste é o mistério invisível da Igreja, tornado visível na Igreja terrestre. É o Christus totus, de que Maria é membro eminente. Com Maria, a Igreja partilha a fecundidade da caridade e a integridade virginal da fé. No campo pastoral, o Bispo de Hipona desenvolveu uma incansável prática catequética e de pregação, em que manifestou, como de resto em toda a sua actuação, um profundo respeito e afecto pelos humildes e todos os que necessitavam da sua ajuda, do seu discernimento e da sua orientação. Deste modo, exprimia na sua acção a doutrina que, no meio de todos os seus trabalhos, continuava a elaborar. Considerava, com efeito, como sua indeclinável obrigação de pastor a instrução dos seus fiéis. Leiria, 13 de Novembro de 2004