O congresso desenhou os contornos jurídicos em que se deram os interrogatórios aos Pastorinhos, começando por comparar o código civil de 1867 (em vigor à altura das Aparições) com as inovações legislativas introduzidas pela república emergente, tentando desta forma oferecer uma visão jurídica (o que em nosso entendimento constitui uma verdadeira novidade do ponto de vista dos estudos da mensagem de Fátima). Foram colocadas inicialmente algumas perguntas: o que é uma criança? O que pensa? Qual a relação com os pais? Estas e outras questões pretenderam ajudar a precisar o nível da maturidade jurídica da criança para precisar por sua vez o que aconteceu com os interrogatórios dos Pastorinhos, e do Francisco em particular. Neste esforço foi evidenciado que o conceito de infância é um conceito recente no mundo jurídico, surge recentemente na história, pois até ao século XVII a criança é apenas considerada do ponto de vista dos adultos. O direito reverteu em lei muitas das vivências e das relações familiares que moldaram a sociedade até ao século XX. A infância foi aí colocada numa relação baseada na autoridade e no dever, inspirada no modelo pagão romano da patria potestas, em que a família surge hierarquizada fortemente em função do género e do poder paternal, o qual olha para os filhos como propriedade sua, o que constitui claramente um modelo não cristão, pagão. É neste mundo de relações, em que juridicamente não existe o dever de os pais respeitarem os filhos, que vive o Francisco. A infância vive assim uma condição de contingência, depende de muitos factores contextuais e, sobretudo, dos interesses do mundo dos adultos. Ainda à época do Francisco, as crianças constituem um grupo social e juridicamente discriminado. Isto mesmo foi justificado com inúmeros exemplos das leis do código civil de 1867 e da república em que as crianças continuavam a ser tratadas passivamente, sem qualquer personalidade socialmente contributiva. O processo dos Pastorinhos foi, por isso, confrontado com este mundo e com este corpo legislativo, numa época em que o direito previa que uma criança poderia servir de testemunha em juízo. Foi demonstrado que, apesar disso, os interrogatórios foram excessivos e violaram as mais elementares regras. As crianças tinham direito ao silêncio, mas muitas vezes nem isso foi respeitado. Não podiam ser ameaçadas e foram. Por último, foi reconhecida a veracidade dos testemunhos dos Pastorinhos, na medida em que os seus testemunhos mostram-se coincidentes. Foi muito notado o facto de as crianças ao deporem não terem querido chamar a atenção sobre si próprias, mas sempre responderam pela verdade, mesmo sob coacção, o que abona em favor da veracidade que as move e pela qual tudo suportam.
A seguir a este mundo concreto do direito, foi visitado o mundo concreto do texto, do texto que é o Francisco Marto enquanto tal. A partir da literatura, no fundo outra forma de mostrar que comunga o Francisco, conseguiu mostrar-se como outra porta de acesso à vida do Francisco e como aí Francisco mostra desejar a transcendência. Vários exemplos foram apresentados, vários detalhes da sua vida foram vasculhados para apresentar as evidentes afinidades entre a literatura, a filosofia e a religião. A absoluta humanidade da literatura comunga da absoluta humanidade do Francisco, humanidade que o congresso sempre teve presente. O texto da vida do Francisco é o espaço da revelação do sentido da sua vida. Por isso se lê, por isso o congresso a quis reler. A aventura do sentido está presente no texto Francisco Marto. Este é então um texto diferente do texto do direito, que fala de modo vinculante no imperativo, ao contrário do texto da vida que manifesta, que shows. É nos pormenores afinal que o Francisco mostra.
Isto obriga a ler o texto Francisco Marto de modo diferente e com muito cuidado à maneira da narratologia contemporânea, respeitando escrupulosamente o texto, este tipo de texto. Nem todas as conferências do congresso o conseguiram fazer. Mas este exercício foi concretizado e confrontado com outros exemplos de poesia sobre crianças, sobre o mundo da infância. Vários poemas foram declamados e comentados nos quais, para lá dos detalhes mas precisamente nos detalhes, foram descobertos muitos indícios de uma vida outra, de uma espiritualidade, de uma transcendência que vai e vem. As crianças surgem nesses textos, como Francisco Marto no seu, envolvidas numa atmosfera intuitiva, inclinadas ao futuro e abertas à escatologia, inclinadas ao cumprimento das suas vidas. Então estes textos manifestam outra coisa daquilo que superficialmente dizem.
A partir então do texto Francisco Marto tentou-se aurir os ensinamentos de pedagogia e de humanização na experiência do pequeno vidente, sempre com o pressuposto que a infância não é uma adultez diminuída nem meramente uma faixa etária, mas um estado de espírito, uma juventude de alma, aquilo que nos constitui. Neste momento, foram confrontados dois grandes modelos pedagógicos: o primeiro inspirado no iluminismo kantiano do dever e o segundo em Rousseau. Foi declaradamente preferido o segundo devido à imagem positiva que dá da criança por aí ser ela mesma portadora de humanidade, enquanto a primeira perspectiva foi criticada devido à noção de inocência que lhe está por trás e que marca negativamente os modelos de desenvolvimento da infância ou das crianças no seu conjunto. Este modelo iluminista tudo submete ao tribunal da razão, onde naturalmente as crianças reprovam sendo por isso consideradas não livres. Nesse modelo só o adulto é livre porque só esse acede à humanização porque só ele manipula a razão que a tal permite. Daqui decorre uma ênfase kantiana exagerada na disciplina, no adestramento da criança para a obrigar a ser o que um adulto é e segundo os modelos adultos. O segundo modelo foi privilegiado porque aí a criança é mais respeitada como alguém que sabe de uma certa maneira, à sua maneira. No entanto, não foi suficientemente explorada a relação entre espiritualidade e pedagogia. No caso do Francisco, se ele não teve tempo de ver a sua intimidade da infância aberta ao mundo pela educação, se esta segunda fase da vivência da infância do Francisco chegou à dita espiritualidade (sendo por aí que Francisco é aberto ao mundo), então será possível que a própria linguagem religiosa seja espaço de transcendência na medida em que a experiência religiosa do Francisco prende-o e apreendo-o, ou seja, educa-o ao melhor de si mesmo.
De seguida, o congresso ofereceu exemplos concretos de uma comunidade paroquial onde pedagogicamente se tenta ajudar as novas gerações ao contacto vivencial desta linguagem e experiência religiosas. Num evidente esforço pedagógico, aí são oferecidas várias estratégias para que as crianças não sejam objecto do rito mas sujeitos activos do mesmo. Isto é realizado incrementando as experiências sensoriais, narrativas, performativas e comunitárias como meios de integração e de iniciação à fé cristã.
A dimensão ética deste processo partiu de seguida da constituição radical do eu no encontro buberiano com o tu, cuja diferença constitui a identidade do eu. Esta faceta filosófica da identidade relativa ficou por explorar.
José Carlos Carvalho