Conferência quaresmal do Bispo do Porto

Que os homens nascem “livres e iguais em direitos” foi afirmação importante das revoluções liberais, a acolher certamente. Mas sempre se embateu com a realidade das distinções persistentes. Por isso, não faltaram críticos práticos aos liberais teóricos, com alguma confusão de planos. A substituição duma sociedade de súbditos e privilégios (direitos particulares de cada grupo social) por outra de cidadãos e direitos comuns, tem sido difícil objectivo da nossa contemporaneidade. E verificamos que os cristãos entraram no debate, quer defendendo tradições, que sempre tinham incluído desigualdades sociais e políticas, quer propugnando por uma igualdade a estabelecer, dada a unidade de origem e a idêntica vocação geral da humanidade, com maior sensibilidade entre eles a um ou a outro destes tópicos. Oiçamos um autor muito influente nos meios católicos oitocentistas: “Uma das risíveis singularidades do último século [XVIII] foi a de querer julgar tudo pelas regras abstractas, sem atenção à experiência, o que é tanto mais de surpreender, quanto este mesmo século não cessava de gritar contra todos os filósofos que começaram pelos princípios abstractos em vez de os buscarem na experiência. Rousseau […] principia o seu contrato social por esta máxima retumbante: O homem nasce livre, e por toda a parte jaz em ferros […]. O homem nasce livre: o contrário desta louca asserção é a pura verdade; porque em todos os tempos e em todos os lugares, até que se estabeleceu o cristianismo, e ainda até esta religião ter penetrado suficientemente nos corações, a escravidão foi sempre considerada como uma parte necessária para o governo e para o estado político das nações. […] Deste modo o género humano é naturalmente em grande parte servo, e não pode sair deste estado senão sobrenaturalmente” (J. de Maistre, Do Papa (1819), Lisboa 1845).

A revelação cristã requer e impulsiona a realização histórica da igualdade, potenciando-a espiritualmente. E os autores cristãos também insistem em que a igualdade se alcança pelo desenvolvimento e partilha do que é e detém cada um e não pela rasoira das abstracções comunitaristas. O Catecismo da Igreja Católica resume-os bem no nº 1936: “Ao vir ao mundo, o homem não dispõe de tudo o que é necessário para o desenvolvimento da sua vida corporal e espiritual. Precisa dos outros. Há diferenças relacionadas com a idade, as capacidades físicas, as aptidões intelectuais e morais, os intercâmbios de que cada um pôde beneficiar, a distribuição das riquezas. Os ‘talentos’ não são distribuídos por igual”. Igualdade na complementaridade reconhecida e oferecida, quer-se então dizer.

Como na comunidade de Jerusalém, assim apresentada por São Lucas: “A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas, entre eles, tudo era comum. […] Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, conforme a necessidade” (Act 4, 32 ss). Sem idealizarmos demasiadamente o tema – logo a seguir Barnabé cumpriu a regra, mas Ananias e Safira não -, o certo é que ficou como horizonte fixo de perfeição cristã, sucessivamente tentado e transbordando para o campo social. Sobremaneira interessante é a seguinte reflexão de São Gregório de Nazianzo, na segunda metade do século IV, recuperando a igualdade de origem para a igualdade a refazer: “Imitemos a altíssima e primeira lei de Deus, que […] para todos estendeu a terra firme e disponível […]. Ao igual pela natureza concedeu o dom da igual dignidade, demonstrando assim a riqueza da sua bondade. Mas os homens […] nem ao menos pensam que penúria e riqueza, liberdade (assim dizemos) e escravidão, e nomes semelhantes, só mais tarde se introduziram no género humano […] ‘No princípio, assim se lê, não foi assim’. […] Mas considera a primordial igualdade de direitos, não a divisão posterior; não a lei dos poderosos, mas a da criação” (Sermão XIV, 25-26).

Das revoluções setecentistas à Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948), prosseguiu-se num caminho geral que, ao menos na teoria, é certamente um ganho. Para os católicos, é também um compromisso reforçado: “Toda a espécie de discriminação relativamente aos direitos fundamentais da pessoa, quer por razão do sexo, quer da raça, cor, condição social, língua ou religião, deve ser ultrapassada e eliminada como contrária ao desígnio de Deus”, asseverou o Vaticano II (Gaudium et Spes, 29).

Recuando – ou avançando – de novo, quer no círculo mais próximo de Jesus, quer nas comunidades que brotaram da sua Páscoa, o Evangelho incarnou igualmente em homens e mulheres, nobres e plebeus, gente daqui ou dali, os factores maiores da desigualdade de então. Tudo fundado no ensinamento central sobre um “Pai” que a todos nos cria e nos espera, pelo caminho da filiação divina que o mesmo Cristo nos abre e possibilita, pelo Espírito comunicado. Como na sua despedida – convite: “Subo para o meu Pai, que é vosso Pai, para o meu Deus, que é vosso Deus” (Jo 20, 17). Em relação a esse fim comum, a igualdade é absoluta, em termos de oportunidade. Dizia-o Paulo aos baptizados, com uma clareza que desafiava radicalmente a sua época e não só: “É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 26-28). Ou seja, a igualdade é quase outro nome da nossa dignidade comum, de primeira origem e último destino, como esclarece o Catecismo da Igreja Católica no nº 1934: “Criados à imagem do Deus único, dotados duma idêntica alma racional, todos os homens têm a mesma natureza e a mesma origem. Resgatados pelo sacrifício de Cristo, todos são chamados a participar da mesma bem-aventurança divina. Todos gozam, portanto, de igual dignidade”. 

É também reconhecida a admiração que as comunidades cristãs causavam aos seus conterrâneos pagãos, exactamente por reunirem senhores e servos, homens e mulheres, autóctones e estrangeiros. Ainda hoje a causam aqui e ali, sendo por isso proféticas. (Mesmo num país como o nosso, as assembleias dominicais são quase a única ocasião em que se reúnem sistematicamente pessoas de várias condições sociais, proveniências e idades, para louvar o mesmo Deus, ouvir a mesma Palavra e comungar da mesma Vida). Contrafacções havia, certamente, como infelizmente se podem reproduzir. Mas essa igualdade de substância e destino estava assegurada pela inquestionável pessoa do “Fundador do Cristianismo”. Não admira assim que, até por não-católicos, a trilogia da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – fosse também ligada à herança cristã.

Mas temos de considerar um certo “tropeço da indistinção”, surgido no caminho da igualdade. Pelas reais ou imaginadas possibilidades da ciência e da tecnologia modernas, chegou-se, por exemplo, a outra consideração do ser humano e da sua realidade masculina ou feminina. Mais do que como produto da natureza, o ser homem ou mulher começou a ser encarado como género cultural de escolha livre. Não se trataria já de evoluir dentro do que se é agora, mas de escolher o que se queira ou se “sinta” ser, alterando a fisiologia pela tecnologia. Por isso, a igualdade, no sentido essencial que buscava, pôde dar lugar à indistinção, como possibilidade e até “legitimidade” de se ser à escolha ou sucessivamente. Culturalmente também, apetece-se a osmose, mais do que a relação propriamente dita.

“Relação”, de facto, supõe distinções de raiz. Ninguém é absoluto, antes relativo, pois só na interdependência das diferenças se realiza como pessoa, isto é, ser em relação. Por isso também, o género ou a raça, a localização e cada cultura, não são necessariamente “limites” à igualdade essencial a realizar, mas possibilidades de ser com os outros, dando e recebendo mutuamente, porque os outros são na verdade outros e nós os outros dos e para os outros. Quererá isto dizer que a igualdade só pode acontecer entre seres distintos que partilhem o que têm: acontece como possibilidade e resultado, não como indistinção “irresponsável”. Entre absolutamente idênticos não haveria campo para a igualdade, porque esta se define na relação, o mesmo se dizendo para a liberdade e a fraternidade.

O tema é muito mais amplo. Começa por ser teológico, pois na consideração bíblica da humanidade cada um de nós integra um todo que se realiza na distinção e na complementaridade. Iguais, conjugando masculino e feminino, na primeira expressão familiar da sociabilidade; iguais, na especificidade dos vários órgãos dum só corpo, como Paulo lembrava aos coríntios (cf. 1 Cor 12, 12 ss). Iguais, mas no espanto daqueles povos todos que, sem deixaram de o ser, ouviram anunciar, na língua de cada um, as maravilhas de Deus (cf. Act 2, 7 ss). E nós cristãos sabemos – como outros, aliás, o intuem – que tudo é assim, complementarmente igual, porque o próprio Deus o é antes de mais, na sua unitrindade: Pai como Pai e Filho como Filho, no amor do Espírito, que entre os dois circula.

Sé do Porto, 18 de Março de 2010

Manuel Clemente

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