Conferência do Cardeal-Patriarca no Fórum “Pensar a Escola, preparar o futuro”

A Escola tem futuro? A dinâmica da esperança”

 

Introdução

            A organização deste “Fórum” faz-me uma pergunta: “A Escola tem futuro?”. A resposta não é simples, sobretudo quando se espera que essa resposta se situe numa “dinâmica da esperança”.

            Quando aceitei esta interpelação, uma avalanche de outras perguntas inquietaram o meu espírito: a comunidade humana tem futuro? A civilização ocidental tem futuro? A família tem futuro? A pessoa humana tem futuro? E aceitei que a resposta a estas questões era prévia à resposta sobre a pergunta que me foi feita. O futuro da escola, enquanto instrumento e estrutura de educação, depende da cultura e da civilização, no fundamentalmente dos objectivos da educação. Queremos educar para quê, para que compreensão da vida e para que modelo de humanidade?

            Esta introdução pode parecer pessimista, o que não exclui a esperança; exige, isso sim, maior objectividade no delinear dos seus fundamentos e a coerência da verdade que possa abrir clareiras à luz da esperança.

 

            Mutação cultural ou deriva civilizacional?

            1. Para intuir o futuro da escola, como instituição educativa, é indispensável situá-la no quadro da acelerada mutação cultural que toca as raias de um colapso de civilização. E a escola é, entre as estruturas da sociedade, aquela onde mais se entrecruzam todas as correntes e manifestações dessa mutação cultural. Entrar na escola é, hoje, entrar numa nau agitada pelos ventos que, por sua vez, agitam o mar da história.

            No centro do vendaval está a compreensão da liberdade e da inteligência racional, as duas pérolas das capacidades humanas, que levou o autor bíblico que narra a origem do homem a dizer que ele foi criado à imagem de Deus. Por isso, desde a mais antiga tradição clássica, a educação era concebida como uma iniciação ao exercício da liberdade e ao desenvolvimento da inteligência racional enquanto busca da verdade, através do conhecimento e do discernimento da realidade.

            O exercício destas duas capacidades fundamentais do ser humano enquadra-se na dimensão relacional do homem. Ninguém descobre a vida e a verdade sozinho, mas em compromisso solidário com todos os outros. A realização individual é inseparável do compromisso comunitário. Esta dimensão comunitária inspira também o pensamento e a busca da verdade. Esta não é apenas a compreensão individual da realidade; há uma verdade comunitária, caldeada na tradição e que fundamenta aquilo a que chamamos civilização. No caldear dessa dimensão comunitária da verdade, entraram aqueles que a procuraram através da inteligência racional – chamaram-lhe os gregos os amigos da sabedoria (filos-sofia); entraram os artistas que a exprimiram na beleza – aos poetas os gregos chamaram “teólogos”; entraram as religiões que, na busca do contacto com a divindade, afirmaram a transcendência da racionalidade humana. Toda esta riqueza só é possível numa comunidade que, ao longo do tempo, caldeou a sua verdade colectiva, tornando espontânea a síntese entre o presente da inteligência e da liberdade e a Tradição.

            Trata-se de uma sabedoria adquirida, de que a cultura é a principal expressão, e que inspira o sentido da liberdade, exercida em cada momento, por cada indivíduo. A educação só é possível na valorização destes elementos fundamentais e estruturantes: a liberdade, a inteligência, a busca da verdade e a complementaridade entre a verdade individual e a verdade comunitária, a abertura do espírito à dimensão transcendente do homem, que começa na beleza e encontra o seu ponto mais exigente na fé e na expressão religiosa.

 

            2. A mutação cultural que está a transformar a fisionomia espiritual das nossas sociedades, fenómeno natural no dinamismo da história, está a alterar a compreensão destas componentes fundamentais. A liberdade, tantas vezes dolorosamente defendida nas suas expressões fundamentais, reduz-se, tantas vezes, à dimensão individual, em que cada um reivindica o direito de seguir o caminho que quer e de fazer as escolhas que prefere; está-se a perder o sentido da liberdade como capacidade de dom, de generosidade e solidariedade, da responsabilidade para com os outros, numa comunidade. O amor, como dom generoso, é a mais nobre expressão da liberdade. Sem essa capacidade de dom, sem fazer dos outros o objectivo principal da nossa liberdade generosa, até as potencialidades naturais de amor, como é o caso da afectividade e da sexualidade, correm o risco de se transformarem em expressões individualistas de egoísmo.

            Isto repercute-se na actividade da inteligência como busca da verdade. Se a cada um basta a sua própria verdade, desaparece a verdade da comunidade, a única que define objectivos colectivos e garante a inspiração ética da actividade racional. Integram-se dificilmente a beleza e a religião numa expressão mais vasta da racionalidade humana. O pragmatismo na busca de soluções e o utilitarismo do consumo, restringem facilmente o uso da liberdade e a busca da verdade, a um materialismo sem abertura à transcendência. E nesse horizonte reduzido, dificilmente haverá lugar para a beleza, para o amor generoso, para a busca de Deus.

 

            Repercussões da mutação cultural na educação e na escola

            3. As manifestações mais problemáticas da mutação cultural, que anunciam uma profunda alteração civilizacional, repercutem-se na educação, sobretudo porque são veiculadas através dos poderosos meios de comunicação, que modelam a cultura e a maneira de conceber a vida e sugerem modos práticos de viver. Nenhuma das clássicas estruturas de educação, a família, a escola, as próprias Igrejas, estão isentas da sua influência, que deveria ser sempre positiva, mas não o é. Todas elas procuram integrá-los no dinamismo educativo, mas não é tarefa fácil, até porque a disputa comercial dos diversos meios procura angariar consumidores, mesmo entre as crianças e os jovens, sem se preocupar com os efeitos na descoberta da vida.

            A escola é, hoje, como instituição formativa, aquela onde se entrecruzam, qual caleidoscópio da sociedade, todas estas manifestações da mutação cultural. Entre os diversos intervenientes na escola há toda a variedade das opções pessoais sobre a vida e a sociedade, o que sujeita o educando à influência de orientações díspares, deixando-lhe a ele, porventura com a ajuda da família, progressivamente fragilizada nas últimas décadas, a tarefa de construir uma perspectiva unificadora da sua descoberta da liberdade e da vida, individual e social. Isto pode levar à relativização radical do dinamismo educativo. Um projecto de vida traça-se, fazendo escolhas que sejam opções da liberdade. Neste quadro é muito difícil a um adolescente e a um jovem fazer escolhas, que o obriguem a optar por orientações diversas vindas dos vários educadores e fortemente influenciada pelos meios de comunicação.

 

            4. A Escola tem futuro?

            Claro que tem, no sentido em que ela continuará inevitavelmente a existir no futuro, porque ocupa um lugar insubstituível no campo da instrução. O problema é saber se a escola do futuro está a garantir um futuro positivo para os nossos jovens e para a sociedade que queremos ser. É nesta perspectiva que devemos procurar os sinais da esperança. Vou tentar enunciar alguns desses sinais, que à medida que forem fazendo caminho na pesada estrutura escolar, podem ser portadores de esperança.

 

            4.1. Um quadro educativo supõe, para ser viável, aquilo a que chamei a “verdade comunitária”. Educar é preparar o exercício da liberdade pessoal num quadro de corresponsabilidade comunitária. Isso supõe uma visão da vida e dos valores da sociedade que queremos ser, que não é desligável da sua tradição, de que faz parte a sua história. Essa “verdade colectiva” veicula a orientação ética da vida do indivíduo em sociedade, e desta como um todo, dinamicamente empenhada na construção de um futuro.

            Como é que se define e garante esta “verdade colectiva”, em que a responsabilidade social não pode menosprezar, nem oprimir, a realização pessoal da individualidade de cada um e da sua dignidade? Durante séculos, nas nossas sociedades europeias, essa “verdade colectiva” foi definida pela herança clássica greco-romana, e pela forte influência do judeo-cristianismo. A Revolução Francesa, o surgir de ideologias racionais, como o iluminismo filosófico e, mais tarde, o marxismo, tentaram mudar a orientação desta “verdade colectiva”, como quadro inspirador da educação. Os Estados de pendor totalitário procuraram impor, como “verdade colectiva”, a inspiração de uma única ideologia, fase de que a Europa está, apenas, a tentar libertar-se, mas sem propostas credíveis para a educação do futuro. Os mecanismos da democracia formal não levam longe, na compreensão da educação, sem a consciência de valores perenes, que não podem desligar-se da grande tradição cultural da Europa.

            Ao alterar-se a compreensão dessa “verdade colectiva”, inspiradora da educação, podemos detectar duas tendências: a daqueles Estados que quiseram arredar totalmente da definição dessa “verdade colectiva” qualquer influência do cristianismo e da sua força inspiradora do mistério do homem. Trata-se de um quadro variado que vai dos Estados que adoptaram como verdade fundamentar a ideologia marxista-leninista e o ateísmo como corolário inspirador de toda a educação, até ao primado absoluto da “laicidade” francesa, dado que influenciou toda a concepção dos Estados da Europa Ocidental, sobretudo dos países latinos. Um segundo grupo, identificamo-lo naqueles Estados, igualmente totalitários, que não ousaram recusar sistematicamente a influência do cristianismo nessa definição, mas que tentaram “domesticar” a visão da Igreja, adaptando-a ao seu próprio projecto, o que a própria Igreja nem sempre impediu.

            Tudo isto me leva à convicção de que não pode competir aos Estados, como poder exclusivo, a definição desse quadro educativo. Os nossos Estados modernos, democráticos, laicos, marcados pelos inevitáveis confrontos ideológicos, garantidos pela convivência democrática, não são capazes de o fazer e de o garantir de modo fiável para o conjunto das famílias. Foi surgindo na compreensão da escola um estatuto que pode ser um sinal de esperança: a “autonomia da escola”, que se exprime num “projecto educativo próprio”, estabelecido em diálogo por todos os intervenientes na escola enquanto estrutura educativa: docentes, família, a comunidade humana mais alargada em que a escola se insere, e de que a Igreja não pode ficar ausente. Esse “projecto educativo”, que teria de ser confirmado pela tutela, a única que o pode inserir no quadro mais vasto da comunidade nacional, e que não deve servir-se desse poder de aprovação para impor qualquer doutrina ideológica. Uma vez reconhecido, deve ser tornado público na comunidade humana que a escola serve, e ser aceite como critério de escolha da escola, por parte dos pais. Nenhum interveniente na escola, sobretudo os docentes, pode fazer prevalecer a sua visão individual sobre esse projecto educativo comunitário. As “associações de pais” podem ter, na definição deste “projecto educativo”, um papel relevante.

            Na escola católica este projecto educativo é necessário e mais fácil de realizar, porque, dada a natureza da instituição, estrutura da Igreja ao serviço da educação, sem deixar de ser global, é necessariamente marcado pela visão cristã do homem e da sociedade. Infelizmente, no nosso quadro legal, os pais ainda não podem optar livremente, em igualdade de circunstâncias, por esse “projecto educativo”.

 

            4.2. A harmonia entre educação e instrução é outra condicionante para que a escola tenha um futuro positivo como estrutura educacional. A instrução ocupa, em percentagem muito elevada, a actividade da escola contemporânea. Com o evoluir da sociedade, as necessidades de instrução alargaram-se e tornaram-se mais complexas. Para além de terem direito a ser educados, as crianças e os jovens precisam de aprender coisas, para lhes alargar o horizonte dos conhecimentos para a compreensão do mundo contemporâneo e os preparar para a escolha e o exercício de uma profissão. O problema que se põe à escola é saber se educação e instrução são caminhos paralelos, ou se se cruzam num mesmo projecto de crescimento humano. Claro que é esta segunda hipótese que é válida para dignificar a escola como estrutura educativa. Nenhum saber é neutro na sua incidência educativa e todos os saberes devem ser harmonicamente integrados num projecto educativo para a descoberta da vida.

            Esta integração harmónica de instrução e educação exige que a escola seja uma comunidade educativa, onde os agentes dos diversos saberes convirjam numa perspectiva unificadora para a educação. Isto exige interdisciplinaridade e muito trabalho em equipa. Supõe que se valorizem saberes e práticas, com maior capacidade aglutinadora, como o desporto, a iniciação artística e a prática das artes, a iluminação de cada saber pelos outros, à descoberta da unidade do saber. Nesta óptica, o ensino da religião pode ter um papel importante a desempenhar.

 

            4.3. A convergência cooperante entre a escola e a família na tarefa educativa é um elemento decisivo para a própria escola na missão educativa. A família é o quadro natural da educação. Mas hoje, mais do que nunca, a família não pode realizar, sozinha, essa missão. A escola, porém, não é um substituto da família; deve ser uma estrutura de cooperação com a família na tarefa educativa. A fragilização progressiva da comunidade familiar devida a causas diversas que não podemos analisar neste momento, tem dificultado essa visão da escola como elemento de cooperação. Devido à complexidade dos problemas sociais a escola é, muitas vezes, substituta da família. Num país em que a quase totalidade das escolas são estatais, isso pode significar o transpor para o Estado a tarefa educativa, perspectiva que, ao longo da história, esteve na origem de graves problemas de civilização. Tenhamos claro que tudo o que provocar ou contribuir para o enfraquecimento da família se repercutirá na escola e na sua missão educativa. São de louvar escolas, que na sua dinâmica interna, procuram meios de diálogo e de apoio às famílias dos seus alunos. Ou desenvolvemos tudo o que facilite esta cooperação, ou a esperança num futuro positivo da escola fica mais ameaçada.

 

            4.4. Escola laica num Estado laico? A Constituição da República Portuguesa define o Estado como laico. Este estatuto é fruto de uma longa evolução do pensamento e da realidade da sociedade e significou, na origem, a autonomia do poder do Estado em relação a outros poderes, entre os quais o poder da Igreja, que foi real e que hoje a Igreja já não reivindica nem quer reivindicar. A lei de separação foi a primeira expressão, extraordinariamente agressiva, dessa autonomia laica do Estado. Mas há um sentido positivo dessa laicidade: o Estado não é confessional, isto é, não se identifica com nenhuma religião, mas respeita o fenómeno religioso, o que exprimiu, recentemente, na Lei da Liberdade Religiosa. E nesse respeito inclui-se a possibilidade de cooperação entre o Estado e as confissões religiosas, para a promoção do bem-comum da sociedade. Esse princípio da cooperação inspira toda a Concordata celebrada entre o Estado Português e a Igreja Católica, reconhecendo, na prática, a predominância da Igreja Católica na Nação Portuguesa.

            Mas se o Estado é laico, a sociedade não o é. E temos assistido, nos últimos tempos, a correntes de pensamento numa dupla direcção: estender a laicidade do Estado a toda a sociedade e a todas as instituições do Estado ao serviço da comunidade, entre as quais sobressai a escola; e o fazer derivar a justa laicidade para um laicismo, qual nova religião, que combate qualquer presença ou influência da religião na sociedade. É uma nova forma de hegemonia totalitária que se disfarça com as vestes da democracia. A escola, como instituição ao serviço da educação não pode ser laica, neste sentido, como não pode ser um espaço sagrado, na acepção religiosa do termo. A escola, qualquer escola digna desse nome, não pode deixar de dar lugar, no projecto educativo, à dimensão religiosa, profundamente presente na tradição cultural portuguesa. A guerra aos símbolos religiosos é, hoje, na Europa, um sinal preocupante. Se a escola por ser do Estado, tem de ser laica nesse sentido de uma laicidade negativa, isso quer dizer que ela, embora sendo do Estado, tem de ter autonomia real de “projecto educativo”.

 

            Os verdadeiros fundamentos da esperança

            5. Mas o verdadeiro fundamento da esperança no futuro da escola reside nos milhares de portuguesas e portugueses que consagram a sua vida à escola e à aventura da educação. Num momento em que parecem ter sido superados os conflitos laborais que opuseram o Estado e os docentes, representados pelos sindicatos, voltemo-nos todos para canalizar todas as energias para a tarefa educativa, que é profissão, mas que é, sobretudo, missão e paixão.

            Na sua origem, na cultura clássica e mesmo bíblica, a escola define-se como relações de um mestre com os seus discípulos. A educação é uma aventura de diálogo humano, feita em comunidade, à descoberta da vida. É preciso revalorizar na função docente, mais pensada para a capacidade de ensinar e instruir, a dimensão do mestre que inspira e conduz, com a dimensão nova de o fazer, não isoladamente, mas em equipa educativa, que procura consensos e comunhão. E a maior parte dos profissionais das nossas escolas têm ainda o carisma e a paixão de serem, não apenas docentes, mas mestres de vida. Saúdo-os a todos como verdadeiros sinais da esperança.

            Entre eles muitos são católicos ou formados na tradição cultural cristã. Não tenham medo de comunicar, no processo educativo, a perspectiva cristã da liberdade, da busca da verdade, da generosidade no serviço do bem-comum, porque os valores cristãos são basilares numa cultura verdadeiramente humanista, e segui-los, pondo-os em prática, não significa, necessariamente, sacralizar a escola, mas servir a pessoa humana, num horizonte de beleza e de transcendência.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2010

† JOSÉ, Cardeal-Patriarca

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