O catolicismo português de ontem para amanhã
1. O catolicismo – ramo maioritário do cristianismo em Portugal – apresenta-se entre nós como instituição, como cultura e como proposta. Em qualquer destes pontos enfrenta grandes desafios, de ontem para amanhã. Como instituição, o individualismo (enquanto individualização); como cultura, o imediatismo (do “penso logo existo” ao “sinto logo existo”); como proposta, o tolerantismo (precisamente como não proposta).
2. Como instituição – a mais antiga entre nós na grande escala -, o catolicismo acentua e requer a vivência comunitária da religiosidade, fazendo dela um critério essencial.
As instituições existem em função das ideias que veiculam e inculcam, garantindo-lhes a transmissão e a vigência, tempo fora. Sendo essencial ao catolicismo a “ideia” de que Deus é uma realidade comunitária (unitrindade divina), de que só comunitariamente a pessoa é “imagem e semelhança de Deus” – Gn 1) e de que, em Jesus de Nazaré, Deus ganha humanidade e solicita relação, relação esta alargada a qualquer pessoa (“tive fome e destes-me de comer…” – Mt 25), tudo isto requer ao cristão-católico a vinculação indispensável a uma comunidade concreta e relativamente estável – família, paróquia, diocese…
Não admira por isso que a rede básica das circunscrições portuguesas tenha molde católico. Significativamente, a designação de paróquia (termo de origem civil) e freguesia (termo especificamente religioso), acabou por evoluir no sentido inverso ao inicial: contaminação semântica que tem na base a unidade de origem.
Hoje em dia porém, as instituições sobrevivem com dificuldades, dada a grande instabilidade dos itinerários individuais, tanto físicos como mentais. O cristianismo não é totalmente alheio a este movimento, dada a insistência original (de Cristo) na decisão de cada um, por exemplo. Mas a realização comunitária da religião mantém-se mal num mundo tão disperso e os ritmos comunitários de iniciação e prática cederam face a outros ritmos de socialização e encontro, mais particulares e variáveis. Alguns sociólogos dizem, sugestivamente, que estamos a passar do “praticante” ao “peregrino”…
3. Como cultura, o catolicismo enfrenta – mesmo dentro de si próprio – o enorme repto do aculturalismo difuso, marcado pela grande dificuldade de ponderação sobre tanta informação imediata.
Como sabemos, a cultura provém do cultivo, que dos campos passou ao espírito, permitindo refletir e decidir com mais substância e sossego. Na habitualidade católica das famílias e comunidades, transmitiam-se noções e práticas tradicionais, bem como valorizações adquiridas. Podiam ser mais ou menos respeitadas no concreto, mas eram geralmente aceites como norma e até como ideal.
A última metade do século XX trouxe-nos outra coisa, especialmente no hemisfério Norte. Um crescimento inusitado de meios de toda a ordem, especialmente materiais e informativos, a revisão constante de certezas adquiridas, a desconfiança pós-moderna em relação às pré e metanarrativas, a comercialização geral e publicitária dos gostos e comportamentos…
Estes e outros fatores dificultam ponderações comunitárias ou mesmo individuais, retraem para a sensibilidade ocasional, “cultivam” pouco ou nada as opções, reagem instintivamente às normas recebidas, desconfiam geralmente das instituições que as transportam. Como instituição quase global e mais antiga na sociedade portuguesa, o catolicismo sofre uma erosão permanente onde todos estes fatores concorrem, mesmo sem verificar o que se alega.
4. Não é este o ambiente mais propício às propostas concretas no campo religioso, especialmente o católico. Mesmo a rápida caracterização acima feita, evidencia a pouca recetividade em relação a elas.
Mais facilmente se aceita que cada um tenha ou deixe de ter esta ou aquela convicção, no descampado neutro em que parecemos estar. As afirmações definidas dalgum crente são facilmente tomadas como fanatismo ou despropósito; a proposta que faça a terceiros dum caminho religioso, uma intromissão abusiva… Não sendo esse o seu sentido original e de algum modo esquecendo o papel histórico que realmente desempenhou, a “tolerância” pode significar hoje, pura e simplesmente, “abandono de campo”, decaindo em tolerantismo.
Mais complexo para o catolicismo – como para outras confissões religiosas – seria a repercussão deste estado de espírito em políticas públicas que extravasassem o (legítimo) aconfessionalismo estatal no (incorreto) aconfessionalismo da sociedade, mantendo-se esta, aliás, religiosa em grande parte. Do ponto de vista católico, retenha-se a afirmação de Bento XVI no Porto, a 14 de maio de 2010: “Nada impomos, mas sempre propomos”. Assim encaramos a concidadania ativa.
5. Neste hoje incerto e inevitável, o catolicismo português tenta redefinir-se e relançar-se, com algumas linhas maiores de pensamento e ação, que têm sido refletidas e propostas em vária instâncias e grupos.
Num recente documento de trabalho da Conferência Episcopal Portuguesa, insistia-se nas seguintes, entre outras: dar visibilidade ao testemunho cristão, fazer da caridade a prioridade dos programas pastorais, dar precedência à intimidade com Deus (= experiência propriamente religiosa), atender às novas problemáticas de crentes em situação não “sacramental” (recasados, em união de facto, etc), presença nas novas urbanizações e superfícies, bem como junto das minorias e dos mais pobres ou empobrecidos, pronunciamentos breves e didáticos sobre as realidades concretas… (cf. Família cristã, outubro 2011, p. 17). Mas é apenas um começo de resposta ao grande desafio que o futuro nos faz.
Quinta das Lágrimas, Coimbra, 28 de outubro de 2011
D. Manuel Clemente, bispo do Porto