“A Catequese no contexto das prioridades
pastorais da Igreja em Portugal”
Introdução
1. O tema que me propusestes para esta intervenção convida-me a não olhar só para a problemática específica da catequese da infância e da adolescência – não é meu objectivo apreciar os dinamismos e instrumentos de que dispomos hoje – mas para a Catequese no seio do Povo de Deus, situada no quadro da edificação da Igreja como Povo do Senhor.
É aí que se situam os desafios de uma renovação pastoral. É claro que não esquecerei que estou a falar a responsáveis da catequese da infância e adolescência, mas serei fiel à minha convicção de que a catequese deve ser uma expressão contínua do crescimento da Igreja, de toda a Igreja, e que se há especificidades a ter em conta na variedade dos membros da Igreja, não podemos isolar nenhum grupo do todo da Igreja. Essa imensa variedade é riqueza e desafio de partilha mútua. Todos têm a dar e a receber.
É-me pedido que situe a catequese no contexto das prioridades pastorais da Igreja em Portugal. O processo desencadeado pela CEP em ordem a defini-las não está concluído. Mas parece-me claro que elas se situarão no reforço sobrenatural das comunidades cristãs em ordem à sua missão na sociedade, cada vez mais “post-cristã”. Só uma Igreja viva, centrada no mistério de Jesus Cristo, será testemunho anunciador. Estas duas prioridades são o conteúdo do desafio lançado pelos últimos Papas para uma “evangelização renovada” ou uma “nova evangelização”.
Já Paulo VI, na “Evangelii Nuntiandi”, afirmou que só uma Igreja continuadamente evangelizada será evangelizadora. A Igreja nasce da missão e é para poder realizá-la que tem de mergulhar continuamente no mistério de Cristo e do seu Evangelho.
“Evangelizadora como é, a Igreja começa por se evangelizar a si mesma” (Paulo VI, Evangelii Nuntiandi, nº 15, cf. nn. 13ss).
A Catequese situa-se no âmbito do esforço de a Igreja se evangelizar continuamente a si mesma, mas não pode desligar-se do dinamismo da missão evangelizadora. A perspectiva que desenvolverei será a do dinamismo de uma “nova evangelização”, na evangelização “ad intra”, isto é, a contínua evangelização da própria Igreja, que é continuamente acompanhada pela inquietação da missão.
Um novo ardor
2. Quando pediram a João Paulo II que explicasse o que entendia por “nova evangelização”, que era diferente de uma re-evangelização, isto é, a continuação do esforço tradicional da Igreja através das suas estruturas de evangelização, indicou como primeira qualidade dessa “nova evangelização”, um novo ardor.
Esta expressão evoca espontaneamente em nós a exclamação de Paulo: “Ai de mim se não evangelizar” (1Cor. 9,16). Um “novo ardor” só pode brotar de uma adesão total a Jesus Cristo. A evangelização é mais do que tarefa programada, é paixão de amor. O anúncio do Evangelho do Reino é a paixão de Jesus Cristo. É para realizar essa sua missão que escolhe discípulos, cria com eles uma intimidade e os envia. Como diz Paulo VI, “existe uma ligação profunda entre Cristo, a Igreja e a evangelização” (Ibidem).
É função da catequese aprofundar esta relação da Igreja e de cada cristão com Jesus Cristo, para poder partilhar com Ele esta paixão pela missão.
3. Retomamos, assim, uma intuição da Igreja, desde os primeiros séculos, de que a catequese é uma “mistagogia”. Orientada para a etapa post-baptismal, para levar aqueles que, no baptismo, mergulharam em Jesus Cristo, a penetrarem mais intimamente no seu mistério, o que abre horizontes novos à compreensão e à expressão da própria vida.
Expressões como “iniciação cristã”, herdada dos ritos iniciáticos, sugere exactamente esse penetrar no âmago do mistério em que se acredita. Bento XVI afirmou, recentemente, mais do que uma vez, que o cristianismo é mais do que um corpo de doutrina, ou um código moral: ele é, fundamentalmente o encontro com uma pessoa, a pessoa de Jesus Cristo.
E é no quadro desse encontro pessoal que o conhecimento se torna apaixonante, pois é no acolher dos ensinamentos dessa Pessoa amada que as exigências morais deixam de ser cumprimento de um código de ética e passam a ser o desejo de viver como o Senhor gosta que nós vivamos.
Para a catequese ser uma “mistagogia”, tem de estar centrada na busca de um encontro, cada vez mais profundo e verdadeiro, com a pessoa de Jesus, não só para perceber, mas para experimentar. O Directório da Catequese afirma: “no centro da catequese encontramos essencialmente uma Pessoa: a Pessoa de Jesus de Nazaré, Filho único do Pai, cheio de graça e de verdade” (Directório Geral da Catequese, nº 98).
E acrescenta: “O cristocentrismo da Catequese, em virtude da sua dinâmica interna, conduz à confissão da fé em Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. É um cristocentismo essencialmente trinitário” (Ibidem, n.º 99).
Esta é a beleza do processo catequético: levar os cristãos baptizados a experimentarem a beleza do Deus, uno e trino, onde nos introduz Jesus Cristo, a desejarem ardentemente “habitar na Casa do Senhor”, a viver a vida presente, antecipando as alegrias do Reino.
A catequese não é uma escola onde se aprende uma doutrina; é um processo, vivido em comunidade, que nos leva a experimentar “como Deus é bom”, como é maravilhosamente bom e amoroso no seu Filho Jesus Cristo.
Este caminho de catequese faz-se em Igreja, participando com ela nos momentos e elementos onde Deus se revela e se nos dá, para nos introduzir na comunhão de vida e de amor: a escuta da Palavra, a celebração dos mistérios, as exigências da missão, aprender a fazer da vida uma expressão de amor e de louvor.
A catequese ensina a escutar a Palavra do Senhor
4. A relação entre escuta da Palavra e catequese é aspecto essencial para a compreensão do dinamismo catequético e porque é, talvez, a maior deficiência das nossas comunidades, torna-se num desafio inadiável para a compreensão do processo catequético.
Limito-me, aqui, a comentar o nº 74 da “Verbum Domini”, Exortação Apostólica Post-Sinodal sobre a Palavra de Deus (texto que tem em conta o que é afirmado no Directório Geral da Catequese, que cita: nn. 94-96)
Começa por sublinhar a importância da catequese na caminhada de toda a Igreja na escuta da Palavra: “Um momento importante da animação pastoral da Igreja, onde se pode sapientemente descobrir a centralidade da Palavra de Deus, é a catequese que, nas suas diversas formas e fases, sempre deve acompanhar o Povo de Deus”.
Neste texto dizem-se coisas importantes acerca da catequese. Antes de mais, que ela é permanente, acompanha toda a caminhada da Igreja. Esta deve ser sempre um Povo em atitude catequética. Não há um tempo para a catequese. O tempo da catequese é o tempo da Igreja. Por isso a catequese supõe formas diversas e várias etapas. As formas diversas constituem, hoje, uma exigência pastoral para garantir a unidade da formação cristã, na variedade dos métodos, dos carismas e dos ritmos.
Nenhuma forma de catequese pode ser fechada sobre um grupo. Tem de ser fecunda para toda a Igreja. Etapas diversas: a vida é feita de etapas. Algumas são óbvias na sua especificidade: a infância e a adolescência; a preparação para o baptismo, chamada de catecumenato; a preparação para o matrimónio; a preparação para vocações de especial consagração; a preparação para formas concretas de missão.
Em todas estas etapas e formas se deve aprender a escutar a Palavra que o Senhor dirige, hoje, à Igreja.
Esta Palavra é, hoje, viva e actual. O Senhor quer estar em diálogo permanente com o seu Povo. Esta Palavra, escutada pela Igreja em cada tempo, foi de tal maneira importante que se fixou por escrito, quer na Sagrada Escritura, quer em textos da Tradição e do Magistério.
Se há algo que uniu a Igreja através dos tempos e definiu a sua fé, foi a escuta permanente da Palavra amorosa de Deus que, para além da sua forma escrita, a Igreja guarda no seu coração. Mas não podemos reduzir esta riquíssima tradição de escuta da Palavra aos textos escritos.
O cristianismo nunca foi e nunca será uma religião do livro. Esses textos são a linguagem que encerra o poder misterioso de Deus nos falar e nos permitir ouvi-l’O. Essa escuta viva e comovente deu, tantas vezes, origem a outros escritos, essa riqueza imensa de textos espirituais que são a voz de Deus a ecoar no tempo.
Reduzir a palavra da Bíblia a um texto passado, situado num tempo concreto, é truncá-lo do seu dinamismo fundamental: ser a linguagem com que Deus nos fala hoje. A catequese assenta na Palavra viva de Deus. Se se limitar a analisar textos do passado, será, talvez, estudo interessante, mas não é catequese.
5. Mas a Palavra viva de Deus é só uma: Jesus Cristo, Verbo encarnado, Palavra do Pai para toda a eternidade. Só se escuta a Palavra, em todas as linguagens com que nos foi transmitida, escutando Jesus Cristo, amando Jesus Cristo.
Ele guarda em Si o segredo de todas as Escrituras e de toda a Tradição. O texto da Exortação Apostólica que vimos comentando ilustra esta relação de toda a escuta da Palavra com a Pessoa de Jesus, com a caminhada do ressuscitado com os discípulos de Emaús: “O encontro dos discípulos de Emaús com Jesus, descrito pelo evangelista Lucas (cf. L c. 24,13-35), representa, em certo sentido, o modelo de uma catequese em cujo centro está a «explicação das Escrituras», que somente Cristo é capaz de dar (cf. L c. 24,27-28), mostrando o seu cumprimento em Si mesmo.
Assim, renasce a esperança, mais forte do que qualquer revés, que faz daqueles discípulos testemunhas convictas e credíveis do Ressuscitado”.
Não estamos a secundarizar a importância dos textos escritos, sobretudo dos textos evangélicos, na catequese. É através deles que escutamos o Senhor, não cada um à sua maneira, mas em Igreja. Deus fala sempre ao seu Povo e cada um de nós deve escutar o que Ele diz à Igreja.
Nesta escuta da Palavra que Cristo dirige à sua Igreja, a catequese prepara o cristão para a importância de ser Igreja, de aprender a confrontar a escuta pessoal com a da Igreja, a relativizar particularismos e individualismos. É que a nossa fé em Cristo ganha carne na nossa fé na Igreja, na nossa adesão à fé da Igreja.
A catequese, hoje, não só não pode sublinhar, mas tem de corrigir a tendência cultural de querer levar a Igreja a dizer o que cada um quer ouvir. “A actividade catequética implica sempre abeirar-se das Escrituras, na fé e na Tradição da Igreja, de modo que aquelas palavras sejam sentidas vivas, como Cristo está vivo, hoje, onde duas ou três pessoas se reúnem em seu nome (cf. Mt. 18,20)”.
O Santo Padre Bento XVI sublinha que a catequese tem de ser impregnada da Sagrada Escritura, não para a estudar, mas para escutar, através dela, a Palavra viva de Deus. “A catequese «tem de ser impregnada e embebida de pensamento, espírito e atitudes bíblicas e evangélicas, mediante um contacto assíduo com os próprios textos sagrados; e recordar que a catequese será tanto mais rica e eficaz quanto mais ler os textos com a inteligência e o coração da Igreja» e quanto mais se inspirar na reflexão e na vida bimilenária da mesma Igreja.
Por isso, deve-se encorajar o conhecimento das figuras, acontecimentos e expressões fundamentais do texto sagrado; com tal finalidade, pode ser útil a memorização inteligente de algumas passagens bíblicas particularmente expressivas dos mistérios cristãos”.
A memorização é importante. É que a Sagrada Escritura, além de nos fazer ouvir, agora, a Palavra de Deus, sugere-nos a resposta que devemos dar a essa Palavra. É como aprender uma nova língua. Espontaneamente respondemos com palavras da Escritura, para acreditar, para louvar, para rezar.
Mistagogia e celebração dos mistérios
6. Se escutarmos a Palavra, ela conduz-nos ao mistério, e à celebração em que participamos dele. Sempre a dimensão mistagógica da catequese valorizou a Liturgia, não apenas como escuta, mas como experiência de comunhão. Aí, não apenas se escuta a Palavra, mas vive-se o mistério de Cristo. Isto explica a centralidade dada, desde o início, aos sacramentos fundantes da vida cristã: o baptismo, a confirmação, a Eucaristia.
Eles unem o cristão a Cristo ressuscitado, introduzem-no, pelo Espírito Santo, na grandeza da comunhão trinitária, elevam-no à dignidade de poderem, com Cristo, oferecer ao Pai o sacrifício pascal para a redenção do mundo. A catequese deve levar à descoberta destes três sacramentos, não apenas explicando-os, mas vivendo-os, mergulhando neles e, através deles, mergulhando em Deus. Não é completamente exacto dizer que, destes três sacramentos, só a Eucaristia se pode repetir. Nela reavivam-se e actualizam-se o baptismo e a confirmação.
O seu efeito foi de tal maneira forte e transformador, que se tornou dimensão permanente do grande acto de louvor. Aí se refresca toda a capacidade de viver, em união com Cristo, toda a vida: a doença e o sofrimento, a alegria e o amor, o arrependimento dos pecados.
A catequese não prepara, apenas, para a celebração destes sacramentos e, neles, de toda a vida. Eles próprios são catequese; porque celebrando-os com fé, crescemos na relação com Cristo, partilhamos com Ele a paixão da missão de anunciar o Reino de Deus, escutamo-l’O sempre de novo, passando a amar a sua Palavra.
A Exortação Apostólica valoriza a importância da vivência da Liturgia para uma escuta, sempre renovada, da Palavra de Cristo e de Cristo Palavra. “Considerando a Igreja como «casa da Palavra», deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada.
Esta constitui, efectivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala, no momento presente, da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde. Cada acção litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Sagrada Escritura” (Verbum Domini, nº 52).
E mais à frente, afirma-se: “Deve-se afirmar que o próprio Cristo «está presente na sua palavra, pois é Ele quem fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura». Com efeito, «a celebração litúrgica torna-se uma contínua, plena e eficaz proclamação da Palavra de Deus.
Por isso, constantemente anunciada na liturgia, a Palavra de Deus permanece viva e eficaz pela força do Espírito Santo, e manifesta aquele amor operante do Pai que não cessa jamais de agir em favor de todos os homens». De facto, a Igreja sempre mostrou ter consciência de que, na acção litúrgica, a Palavra de Deus é acompanhada pela acção íntima do Espírito Santo que a torna operante no coração dos fiéis” (Ibidem)
7. A catequese não pode ser um grupo de estudo e de aprendizagem, nem o catequista é um professor. Todas as formas de catequese têm de ter o ritmo da Igreja que, em comunidade, escuta a Palavra, mergulha na celebração do mistério, aprende a rezar e parte a anunciar.
Toda a catequese converge para a celebração do mistério pascal, na Eucaristia. O catequista é, a seu modo, um pastor, sacramento de Cristo, Bom-Pastor, que conduz um grupo de cristãos a aprofundarem a sua identidade cristã. Estamos conscientes que da renovação contínua da catequese depende muito a renovação da Igreja, para poder ser “sal da terra” e “luz do mundo”.
Não é aqui o lugar de analisar pedagogias e ritmos específicos para as diversas formas e etapas da catequese. Guardemos apenas esta convicção: a catequese é para toda a vida; todas as suas diversas formas devem convergir para a edificação da Igreja, como unidade de fé e de comunhão.
Vençamos os particularismos que nos podem fechar sobre a realidade da Igreja. Esta, quanto mais se renova, mais plural é e mais busca a unidade. Se Cristo está connosco, Ele não nos pode dividir.
Gostaria de terminar com um aspecto a que sou particularmente sensível. Eu nunca fui “catequista”; e, no entanto, sou o primeiro catequista da Igreja a que presido como Pastor.
Os sacerdotes do meu presbitério são catequistas, nem eu nem eles, podemos descartar-nos desta responsabilidade e desta missão. Os cristãos, a quem chamamos “catequistas”, só o são em comunhão connosco: eles participam do nosso ministério apostólico.
É belo sentir esta unidade. Todos participamos da missão de Jesus Cristo, Ele o primeiro evangelizador e o catequista da nossa fé, que através do Espírito Santo nos ensina o amor.
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca