«A atualidade do Concílio Vaticano II»
Beleza e Transcendência
1. O homem busca espontaneamente o belo, como busca o amor. A beleza é, em si mesma, uma expressão da transcendência do homem, e de Deus, o transcendente. A beleza abre o coração humano para o infinito, convida-o a abrir o espírito para um horizonte de vida onde, se o atingir, ele encontrará a plenitude da vida. A beleza é sempre, na experiência humana, uma notícia de Deus. Nada fecha tanto o homem à busca de Deus como a renúncia à beleza.
Compreende-se, pois, que a religião seja um lugar privilegiado da busca da beleza, expressa na criatividade humana, sobretudo nos templos, mas no interior do homem como experiência de harmonia, de paz, de amor: a beleza torna-se experiência de contemplação.
2. Estamos a celebrar 50 anos do Concílio Vaticano II. Gostaria de, no início desta minha intervenção, vos citar uma passagem da “Mensagem do Concílio a todos os Homens”, na parte dirigida aos artistas:
“E agora a vós os artistas, que estais possuídos da beleza e trabalhais para ela: poetas e homens das letras, pintores, escultores, arquitetos, músicos, homens do teatro e cineastas… a todos vós a Igreja do Concílio diz pela nossa voz: se sois amigos da verdadeira arte, sois nossos amigos! A Igreja fez, há muito tempo, aliança convosco. Vós edificastes e decorastes os seus templos, celebrastes os seus dogmas, enriquecestes a sua liturgia. Ajudastes a traduzir a sua mensagem divina na linguagem das formas e das figuras, a tornar sensível o mundo invisível.
Hoje, como ontem, a Igreja precisa de vós e volta-se para vós; diz-vos pela nossa vós: não deixeis quebrar uma das mais fecundas alianças. Não recuseis pôr o vosso talento ao serviço da verdade divina. Não fecheis o vosso espírito ao sopro do Espírito Santo.
Este mundo em que vivemos precisa da beleza para não soçobrar no desespero. A beleza, como a verdade, é que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste à usura do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração. E isto através das vossas mãos… Que essas mãos sejam puras e desinteressadas. Recordai-vos que sois os guardiões da beleza no mundo. Que isso vos leve a libertar-vos de gostos efémeros e sem valor verdadeiro, a libertar-vos da busca de expressões estranhas e doentias.
Sede sempre e em toda a parte dignos do vosso ideal, e sereis dignos da Igreja que, pela nossa voz, vos dirige hoje a sua mensagem de amizade, de saudação, de graça e de bênção”.
Impressiona a atualidade desta Mensagem, aprovada há 50 anos, pelos Padres Conciliares. Ela abre-nos à atualidade, 50 anos depois, da visão de Igreja dos Padres Conciliares. A Igreja quer ser o lugar da beleza e, por isso, considera os artistas seus aliados naturais.
A beleza, sacramento do mistério
3. É específico da Igreja viver e celebrar no tempo, no seio da realidade humana, o mistério, de Deus e do homem à luz de Deus, em Jesus Cristo. A arte é, entre as realidades humanas, aquela que mais espontaneamente abre ao mistério, vivido e celebrado pela Igreja. Citemos agora a primeira Constituição Conciliar: “Entre as mais nobres atividades do espírito humano contam-se justamente as belas artes, mas sobretudo a arte religiosa e, de modo especial, aquela que é a sua plenitude, a arte sacra. Por natureza elas procuram exprimir nas obras humanas a beleza infinita de Deus e consagram-se de tal maneira a aumentar o seu louvor e a sua glória, que não têm outro objetivo que não seja o contribuir o mais possível para voltar as almas humanas para Deus” (SC. nº 122).
É sobretudo na liturgia, em que a Igreja celebra o mistério, que a arte e a beleza são chamadas a essa função de mediação sacramental. Tudo o que contribui para a celebração da fé, da comunidade reunida como povo sacerdotal, espaços, imagens, objetos litúrgicos, devem ser belos e garantir a harmonia com a comunidade orante, “para significar e simbolizar as realidades celestes (…) a Igreja velou sempre, com um zelo especial, para garantir que o material sagrado contribuísse, de maneira digna, para o brilho do culto, admitindo todavia, quer nos materiais usados, quer nas formas ou na decoração, as mudanças introduzidas ao longo dos tempos pelo progresso das técnicas” (SC. nº 122).
Portanto, nesta busca da beleza para a celebração do mistério, a Igreja não tem um estilo próprio. É da sua natureza procurar a harmonia da sua realidade espiritual com a cultura, a sensibilidade própria de cada tempo. São as escolas culturais e artísticas que são chamadas a colaborar com a Igreja, garantindo à expressão do mistério a beleza que ele requer. Isso não significa que a Igreja possa aprovar e aceitar todas as criações da arte. O Concílio afirma: “A Igreja comportou-se sempre como juiz das belas artes, discernindo entre as obras dos artistas aquelas que se harmonizam com a fé, a piedade e as leis tradicionais da religião, e que seriam suscetíveis de um uso sagrado” (SC. nº 122).
O tema desta conferência leva-nos a centrar esta convergência entre a arte e a expressão da Igreja na celebração dos mistério cristãos, no templo, isto é, no espaço sagrado onde a assembleia se reúne para celebrar os mistérios da fé, tendo em conta que a conceção do espaço tem de ser dinamicamente aberta à atualidade da celebração da fé. A obra artística é expressão da beleza e esta é atual, tem a marca do presente aberto para a eternidade.
O mistério do Templo
4. Construir uma Igreja significa, na linguagem comum, edificar um templo cristão. Isso supõe uma compreensão da conceção de templo na teologia cristã. Na história das religiões, o templo é a morada de Deus no meio dos homens. No caso de Israel Deus não facilita a construção de um templo material, pois o que Ele quer é habitar no seu povo, deseja que esse Povo, seu escolhido, seja, no meio dos outros povos, o lugar onde Ele habita.
No Novo Testamento esse desejo de Deus vai realizar-se. Ele não quer habitar num templo de pedra, mas no coração dos homens, no Povo escolhido e santificado por Cristo, Deus feito Homem. É Ele o templo desejado por Deus para habitar. No episódio da purificação do Templo, Jesus afirma: “arrasai este Templo e Eu o levantarei em três dias”. São João explica que Jesus falava do templo do Seu corpo (Jo. 2,19-21). Cristo é o novo e definitivo Templo. A Igreja identifica-se com Cristo, é o corpo de Cristo. Ela é o novo Povo do Senhor, o verdadeiro Templo que Deus sempre desejou. Nela como Povo e em cada um dos seus membros, Deus habita.
São Paulo explicita-o na 1ª Carta aos Coríntios: “Não sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o Templo de Deus, Deus o destruirá. Pois o Templo de Deus é santo e vós sois esse Templo” (1Cor. 3,16-17).
O Concílio propõe esta noção de Templo: “O Espírito habita na Igreja e no coração dos fiéis como num templo, neles Ele reza e atesta a sua condição de filhos de Deus por adoção” (LG. nº 4).
Este novo Templo onde Deus habita, a sua Igreja, é Ele próprio que a constrói como foi Ele que, envolvendo a Virgem Maria na Sua sombra, gerou no seu seio o Verbo de Deus feito Homem. O Concílio afirma que “a Igreja é a construção de Deus. O próprio Senhor se comparou à pedra rejeitada pelos construtores e se tornou pedra angular” (LG. nº 6).
5. A construção de um “templo” de pedra tem de se inserir no ritmo da construção deste templo vivo, que é a Igreja. Tudo nele deve contribuir para as expressões espirituais da construção da Igreja viva, o verdadeiro Templo onde Deus habita e age. Há uma transcendência que tem de se exprimir na pedra: a sua harmonia tem de ser expressão da harmonia da ação salvífica de Deus, Trindade Santíssima.
A qualidade da Igreja, Templo do Deus Vivo, não se esgota na Sua presença no templo material. Mas esta está no centro, porque a Igreja é, antes de mais, assembleia convocada, Povo de Deus reunido para celebrar os mistérios da salvação. E nada no templo material deve agredir a atitude espiritual dessa assembleia reunida. É aí que a Igreja celebra a Eucaristia e os outros sacramentos; é aí que adora Cristo ressuscitado realmente presente na Reserva Eucarística; é aí que, individualmente se busca o encontro pessoal com Cristo vivo e, por Ele, com o Pai; é aí o lugar privilegiado para escutar a Palavra de Deus. A harmonia e a beleza do edifício material deve ser ambiente propício para todas estas expressões de um povo crente, Igreja viva, Templo do Deus vivo.
Isto supõe que aqueles que imaginam e projetam o templo de pedra, tenham, na sua fé, uma compreensão da realidade da Igreja viva. Aliás deveria ser sempre em equipa, de que façam parte os arquitetos, outros artistas, teólogos e liturgistas, que se deveria projetar uma Igreja. Os critérios, a inspirar o resultado final, têm de ser consentâneos com o ritmo da Igreja viva.
O Concílio afirma mesmo que é preciso dar prioridade à beleza sobre a suntuosidade (cf. SC. nº 124); a simplicidade é, tantas vezes, mais consentânea com a beleza. É por isso que o Concílio não hesita em afirmar que a função do artista é um ministério, isto é, um serviço para a edificação da Igreja viva (cf. SC. nº 122).
A arte e o tempo
6. Na celebração dos seus mistérios a Igreja, ao longo de 2000 anos, realiza uma síntese maravilhosa entre a perenidade da sua fé e a sua expressão temporal. A arte religiosa é um elemento importante na formação da Tradição. Merece a pena citar aqui um texto da Constituição “Sacrosanctum Concilium”: “A Igreja nunca considerou nenhum estilo artístico como coisa própria, mas, segundo o carácter e as condições dos povos, segundo as necessidades dos diversos ritos, a Igreja aceitou os géneros de cada época, produzindo ao longo dos séculos um tesouro artístico que é preciso preservar cuidadosamente. Que a arte da nossa época e a de todos os povos e nações tenha, também, na Igreja, a liberdade para se exprimir, desde que sirva os edifícios e os ritos sagrados com o respeito e a honra que lhe são devidos; assim juntará a sua voz a esse admirável concerto de glória que homens grandes cantaram em honra da fé católica ao longo dos séculos passados” (SC. nº 123).
Nesta harmonia entre o perene e o temporal, nesta polifonia de estilos, de escolas artísticas, de dimensões próprias do tempo presente, a arte sacra garante o diálogo da Igreja com a cultura e a relação do que é próprio de cada tempo com o carácter imutável da fé da Igreja. Para valorizar elementos da atualidade cultural não pode agredir a perenidade do mistério. É por isso que a Igreja viva ainda se sente hoje bem a celebrar e a rezar em templos românicos, góticos ou barrocos. Compete à liturgia viva realizar a síntese entre esses estilos do passado e a atualidade da fé da Igreja.
Há um aspeto desta síntese entre perenidade e temporalidade da fé da Igreja que gostaria de referir, porque o considero particularmente significativo para a arquitetura religiosa. Ao longo dos séculos verificámos que dimensões do mistério da Igreja, particularmente vivas na espiritualidade do tempo, se exprimiram na arquitetura religiosa. Assim a centralidade do ministério apostólico e a importância dada ao ministério do Bispo, exprimem-se na Basílica romana e no românico; a dimensão escatológica da Igreja, que se concebe como um povo peregrino a caminho da Pátria Celeste, exprime-se no gótico em que as Igrejas são “orientadas” e a assembleia litúrgica se concebe como um povo a caminho do “oriente”, isto é, da última vinda de Cristo, levando à sua frente o Bispo ou o presbítero seu representante; a adoração eucarística marca o estilo barroco, etc.
Podemos dizer que uma dimensão particularmente afirmada da experiência espiritual da Igreja se exprime na arquitetura religiosa. Nesse sentido podemos dizer que o Concílio Vaticano II, longamente preparado pelo movimento litúrgico, com a sua visão de Igreja, gerou um estilo próprio de arquitetura religiosa. O principal elemento da eclesiologia do Vaticano II a influenciar a arquitetura religiosa é a dimensão comunitária da Igreja. Esta é vista como comunidade de todos os fiéis, um povo sacerdotal. A principal expressão desta comunidade eclesial é a celebração eucarística. Todo o espaço litúrgico é concebido em ordem a esta comunidade reunida, na pluralidade dos seus carismas e ministérios. As consequências arquitetónicas mais imediatas foram a colocação do Altar, o relevo dado à mesa da Palavra, a convergência da assembleia para o Altar, a união, numa mesma assembleia celebrativa, dos fiéis e dos servidores do Altar, presbíteros, diáconos, acólitos.
A assembleia litúrgica é presidida pelo Bispo ou um presbítero, e a cadeira da Presidência tem desafiado as soluções arquitetónicas.
Um elemento a exigir consciência teológico-litúrgica por parte dos arquitetos é o lugar da Reserva Eucarística, que na Igreja Católica é desafio de adoração permanente e de oração pessoal. O Sacrário tem de ocupar um lugar que lhe dê, fora da celebração eucarística, centralidade de convergência de todo o espaço sagrado. A adoração pessoal é, também, uma expressão de toda a Igreja orante e adorante. Nem todas as soluções encontradas nas novas Igrejas são satisfatórias.
Um outro elemento sempre a exigir uma solução que respeite a compreensão da Igreja, é o Batistério. Duas linhas teológicas influenciaram a arquitetura: a relação entre Batismo e Eucaristia, que levou a colocar o Batistério em relação direta com o Altar, e a visão do Batismo como sacramento de entrada na Igreja, retomando a tradição de colocar o Batistério à entrada da Igreja. Nessa solução não se pode perder de vista a relação do Batismo com a Eucaristia. As duas soluções podem convergir numa equilibrada integração do Batistério com a assembleia do Povo de Deus.
Um outro sacramento exigirá, à luz do magistério recente, criatividade arquitetónica: o sacramento da Penitência ou Reconciliação.
Outras visões socioculturais da Igreja, explicitadas por uma certa teologia, acabaram por ter influência na arquitetura e têm a ver com a inserção do edifício da Igreja no conjunto da cidade e da realidade humana. A Igreja que se apaga como edifício sagrado e se esconde no rés-do-chão de um prédio, ou o espaço do templo que serve para outras atividades da comunidade humana, sendo polivalente na sua utilização. As soluções encontradas não satisfazem e voltou-se a admitir que a Igreja deve ser, na sua inserção na Cidade, um sinal físico do sagrado.
7. Nesta mesma linha da influência das visões da Igreja na arquitetura religiosa, está-se a assistir a um outro fenómeno: as visões de Igreja de certos movimentos em concreto a quererem influenciar arquitetonicamente o Templo que é de toda a comunidade. Uma visão de Igreja, para se exprimir publicamente na arquitetura, tem de ser a visão oficial da Igreja, confirmada pelo Magistério. E o Bispo é o último guardião desta autenticidade eclesiológica. Para isso deve garantir serviços de qualidade que promovam a autenticidade da arquitetura religiosa e proíbam os desvios e as falsas soluções.
Aliás, esta criatividade em ordem a uma arquitetura religiosa que se insira dinamicamente no verdadeiro Templo do Deus vivo, exige formação permanente de arquitetos e outros artistas e do clero (cf. SC. nn. 127, 129). Supõe que todo o Povo de Deus tenha uma consciência clara do mistério da Igreja a que pertencem. Quantas vezes, uma visão pietista dos fiéis, acaba por influenciar soluções arquitetónicas frágeis ou mesmo erradas. A harmonia da beleza tem a sua fonte na harmonia da fé, confessada e vivida.
Lisboa, 16 de novembro de 2012
D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa