A propósito da mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais
O discurso do Papa Francisco desloca-se de uma perspetiva, por vezes prevalente em certo discurso pastoral, em que a comunicação é vista como transmissão de conteúdos – tanto no que diz respeito à comunicação massmediática, como às novas plataformas comunicativas. Alicerçadas na experiência de que têm uma mensagem a transmitir, as Igrejas têm cultivado uma perspetiva funcional dos sistemas comunicativos, vistos sempre como uma possibilidade de diversificação de meios para a circulação da sua mensagem.
A mensagem do Papa Francisco imprime uma rotação de perspetiva, apelando para a necessidade de compreensão deste novo contexto como cultura – na ótica do Papa, um contexto que exige a reinvenção de uma cultura do encontro. Mesmo anotando os riscos e perversidades há, na mensagem do Papa Francisco, um olhar de bondade sobre as redes comunicativas, como que uma bondade genesíaca: «Particularmente a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus.» Esta mudança de perspetiva abandona, pois, um discurso preponderantemente instrumental, para a consideração das redes de comunicação como ambiente (digital) onde se desenvolvem relações: «Tenho-o repetido já diversas vezes: entre uma Igreja acidentada que sai pela estrada e uma Igreja doente de autorreferencialidade, não hesito em preferir a primeira. E quando falo de estrada, penso nas estradas do mundo onde as pessoas vivem: é lá que as podemos, efetiva e afetivamente, alcançar. Entre estas estradas estão também as digitais, congestionadas de humanidade, muitas vezes ferida: homens e mulheres que procuram uma salvação ou uma esperança.» No essencial, o Papa Francisco fala do ambiente digital como um lugar onde se encontram os homens e as mulheres com problemas similares aos que se descobrem noutros espaços sociais.
Quais são os traços desta cultura marcada pela ética do encontro, a partir da memória e experiência cristãs? O discurso revela-se consciente da complexidade própria das novas «mediasferas», onde se descobre a turbulência própria das zonas intermédias, das interfaces, dos curto-circuitos, o vaivém entre a pequena e a grande escala. A leitura contextual proposta dá conta da preponderância de uma cultura da extensão (sirvo-me aqui de uma categoria de Régis Debray). Uma cultura que dá prioridade ao espaço em detrimento do tempo, do imediato em detrimento da duração, aproveitando para tal a maior parte das inovações tecnológicas (sampling e zapping, culto do direto e imediato, montagem instantânea e viagens ultrarrápidas). Estamos, paradoxalmente, perante um alargamento vertiginoso dos horizontes e uma contração planetária.
A partir do que se poderia descrever como uma analítica profética, a mensagem do Papa Francisco sublinha o facto de que este encurtamento de distâncias não pode apresentar-se como uma oportunidade totalmente partilhada, em razão das fraturas de desigualdade que persistem. Ou seja, observa-se o paradoxo de um fenómeno que se descreve pelo encurtamento da distância (no espaço) e pelo aprofundamento da distância social incrementado por novas formas de exclusão ou recomposição das já conhecidas. Os meios que permitem estar mais perto podem introduzir novas fronteiras de exclusão. Na sua mensagem, o Papa Francisco, alude à memória das grandes metrópoles do final século XIX, onde a abertura de grandes avenidas, particularmente votadas ao comércio e serviços, tornaram ainda mais visíveis algumas vulnerabilidades e fraturas sociais.
Neste quadro de ideias, o Papa Francisco não lê esta nova realidade como um fenómeno primariamente tecnológico, mas, como um acontecimento mais amplamente humano, observando que a tecnologia, em si, não cria comunhão ou proximidade. Deparamo-nos pois com um discurso humanista, que não se deixa iludir pelo virtuosismo tecnológico, antes se preocupa com as condições que permitem às mediações técnicas a inscrição num habitat verdadeiramente humano. As novas plataformas comunicativas são inseridas num tópico central da doutrina social católica: a unidade do género humano: «Neste mundo, os mass-media podem ajudar a sentir-nos mais próximos uns dos outros; a fazer-nos perceber um renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a um compromisso sério para uma vida mais digna. Uma boa comunicação ajuda-nos a estar mais perto e a conhecer-nos melhor entre nós, a ser mais unidos.» Precisamente porque moldado a partir de uma experiência facilitadora da afirmação da diversidade, este discurso não se transcreve numa compreensão monolítica essa experiência do universal humano. Pelo contrário, a linguagem usada é faz um apelo muito expressivo à afirmação e reconhecimento das diferenças: «Temos necessidade também de ser pacientes, se quisermos compreender aqueles que são diferentes de nós: uma pessoa expressa-se plenamente a si mesma, não quando é simplesmente tolerada, mas quando sabe que é verdadeiramente acolhida. Se estamos verdadeiramente desejosos de escutar os outros, então aprenderemos a ver o mundo com olhos diferentes e a apreciar a experiência humana tal como se manifesta nas várias culturas e tradições.»
A argumentação apresentada vê esta nova mediasfera não apenas como o resultado do fluxo de mensagens, mas como um lugar onde se recompõem os vínculos sociais, os modos de construir o espaço partilhado. Este traço constituiu, sublinho de novo, uma mudança de paradigma no discurso católico autorizado. Com frequência, as novas plataformas de comunicação eram apresentados, pastoralmente, na ótica da metáfora dos novos areópagos – ou seja novos meios para disseminar a mensagem. Na perspetiva enunciada pelo Papa Francisco, aprofunda-se uma outra metáfora, a da cidadania (em vez de novos areópagos, novas cidades).
Sabemos que desde cedo a metáfora da cidadania descreveu a forma própria de inscrição dos cristãos no espaço comum. É verdade que as teologias cristãs foram historicamente marcadas por uma reflexão sobre o tempo, enquanto história habitada por um desígnio salvífico. Mas também é justo não esquecer que encontramos, por exemplo, na teologia paulina, a consciência de que vocação cristã tem como horizonte todo o espaço conhecido (literalmente, oikoumenê), ultrapassando a ideia de uma condição cristã vivida num espaço separado. A ideia de cidadania partilhada (outra forma de falar de laicidade) é conatural à memória cristã – mesmo se historicamente ela conheceu muitas ambiguidades. Recorde-se, por exemplo, um dos traços característicos da apologética que se desenvolveu no contexto do martírio, no cristianismo antigo. Em vez de um discurso defensivo, que devolvesse ao perseguidor a violência recebida, encontramos uma argumentação que visa mostrar que os cristãos querem participar num bom entendimento da vida coletiva e não furtar-se a esse entendimento.
É a ideia de comunhão enquanto cidadania que leva o Papa Francisco a reforçar a ideia de uma abertura das Igrejas ao ambiente digital: «Abrir as portas das igrejas significa também abri-las no ambiente digital, seja para que as pessoas entrem, independentemente da condição de vida em que se encontrem, seja para que o Evangelho possa cruzar o limiar do templo e sair ao encontro de todos. Somos chamados a testemunhar uma Igreja que seja casa de todos» (acrescento, literalmente ecuménica).
Ora, onde encontrar, o nervo da via evangélica para esta compreensão da condição de cidadania? Na figura da «proximidade». Se a comunicação é, na argumentação já apresentada, uma redução de distâncias, a «proximidade» é o lugar de elaboração da experiência de cidadania. Neste contexto, a estrutura da mensagem parece apontar para a necessidade de ultrapassar o que poderíamos apelidar de compaixão à distância (o sociólogo Luc Boltanski estudou, neste contexto, as modalidades de «sofrimento à distância»). Essa modalidade de compaixão corresponde a construções sócio-comunicativas em que se favorece uma dramática social em que o espetador e a cena se distanciam. Quantas vezes, a relação com o sofrimento do outro, não se circunscreve ao plano da denúncia, da relação sentimental ou estética, circunstância em que a comunicação é ao mesmo tempo evitamento ou distanciamento? Nesta mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, a alusão à chamada parábola do Bom Samaritano tem uma particular centralidade, porque, tal como na narrativa evangélica, visa abrir para uma inesperada experiência de proximidade: «Então, como pode a comunicação estar ao serviço de uma autêntica cultura do encontro? E – para nós, discípulos do Senhor – que significa, segundo o Evangelho, encontrar uma pessoa? Como é possível, apesar de todas as nossas limitações e pecados, ser verdadeiramente próximo aos outros? Estas perguntas resumem-se naquela que, um dia, um escriba – isto é, um comunicador – pôs a Jesus: E quem é o meu próximo? (Lc 10, 29). Esta pergunta ajuda-nos a compreender a comunicação em termos de proximidade. Poderíamos traduzi-la assim: Como se manifesta a «proximidade» no uso dos meios de comunicação e no novo ambiente criado pelas tecnologias digitais? Encontro resposta na parábola do bom samaritano, que é também uma parábola do comunicador. Na realidade, quem comunica faz-se próximo. E o bom samaritano não só se faz próximo, mas cuida do homem que encontra quase morto ao lado da estrada. Jesus inverte a perspetiva: não se trata de reconhecer o outro como um meu semelhante, mas da minha capacidade para me fazer semelhante ao outro. Por isso, comunicar significa tomar consciência de que somos humanos, filhos de Deus. Apraz-me definir este poder da comunicação como proximidade».
A questão do «próximo», sabemo-lo, é central na pregação evangélica. O amor que se exprime nessa relação é o amor-agapê, que não descreve apenas a relação com Deus, ou a relação entre si dos crentes. Pode qualificar as relações de forma universal. Que tipo de relação é esta? Aquela em que o dom não é mobilizável pelo valor do objeto, pela sua beleza, pela sua excecionalidade ou pela capacidade de retribuição. Este amor dirige-se sempre a alguém de concreto, singular, o próximo concreto. O amor-agapê não se dirige à humanidade em geral, como ideal, mas à pessoa em particular, àquele com quem nos cruzamos. Este amor-agapê está para além das relações familiares, amicais ou étnicas. Dirige-se ao humano simplesmente humano que se encontra no outro, para além de todas as classificações sociais.
A mensagem do Papa Francisco inscreve, assim, a mediação tecnológica na lógica do dom. No fundo, trata-se de pensar as novas oportunidades de comunicação como outros lugares de reinvenção do amor-agapê, ultrapassando o que divide e fazendo crescer o que é comum. As condições são, a liberdade e a disponibilidade para deixar que as relações se tornem permeáveis à lógica do dom – o rasto de certa linguagem, como o da «partilha», nas chamadas redes sociais, pode ser um lugar de aprendizagem.
Nesse apelo para ultrapassar os limites de uma compaixão à distância, é necessário sublinhar que a distância não se mede, aqui, no espaço. Mede-se na capacidade de se aproximar para cuidar. As vias numéricas e digitais são caminhos do samaritano. As novas redes são também lugares de corpos caídos que exigem o toque do cuidado. O bom samaritano não é um perito na tecnologia. Diríamos que é um frequentador capaz de comunicar na ótica do utilizador. Vê e age para além das simetrias, estereótipos, e outras classificações sociais (incluindo amigo/inimigo). O ator na parábola não é o herói de uma saga. É alguém livre para o outro – no caso da parábola evangélica, livre de preceitos religiosos, que impediam a aproximação ao outro.
Termino observando que o profissional da comunicação não fica excluído deste imperativo do cuidado: «A neutralidade dos massmedia é só aparente: quem comunica só pode constituir um ponto de referência colocando-se a si mesmo em jogo. O envolvimento pessoal é a própria raiz da fiabilidade dum comunicador. É por isso mesmo que o testemunho cristão pode, graças à rede, alcançar as periferias existenciais.» A isenção ou neutralidade do sacerdote e do levita, são nesta ótica, destrutivas. Eles podem ser o exemplo de quem pode estar próximo, sob o ponto de vista das distâncias, mas ao mesmo tempo desligado (sem laços com o outro). O Papa Francisco propõe assim uma conceção de distância e proximidade que reflete a intuição de que essas duas dinâmicas afetam de forma decisiva a comunicação, as sociabilidades, a cidadania, independentemente do medium em causa.
Alfredo Teixeira
Centro de Estudos de Religiões e Culturas (UCP)