Padre Carlos Aquino, Diocese do Algarve
Ainda em deserto. Confinados e famintos. Hospedando esperas. Deixemos que a Sua palavra rasgue o nosso coração sedento e inquieto: “Como Eu vos amei”.
Mas como nos amou Ele? Esquecemos? Ainda é possível vivermos no espanto e seduzidos por esse amor até ao fim, sem reservas, inteiro, profundo, misericordioso? Amamos ainda o Amor que liberta, cura, perdoa, dá vida?
Amo os outros como Ele me amou? Como o faço? Não basta tê-lo presente no meu pensamento? Nas palavras balbuciadas cada dia em oração no silêncio do quarto ou da casa? Não será expressão de amor a minha comunhão com os que nos interiores dos templos sem gente, mas não vazios, oferecem todos os dias por todos, a oblação de louvor e de adoração a Deus? Será suficiente a expressão do meu amor pela comunhão espiritual?
Será amado quando apresentado, de novo, Vivo e Ressuscitado pelas vias de transmissão telemática? Não serve como expressão de amor a participação em tantas horas de formação e de espiritualidade partilhadas?
“Como Eu vos amei”. Perante o desespero que se agiganta nas comunidades cristãs que vão definhando nas suas dispersões e desencantos de há muito estarem privadas de encontro; acolhendo as suas mágoas e desabafos pelas Igrejas fechadas e a ausência das celebrações da fé; sentindo-as feridas nas suas economias paradas e cilindradas como em tantas famílias a quem já falta o pão para cada dia e o necessário para o sustento a que têm direito por justiça e dignidade, como amar? Amar em Seu nome e como Ele? Não cumprimos o amor pela recolha e a entrega generosa de bens, expressão de uma solidariedade ativa e partilhada em nome da comunidade? Precisamos tocar as feridas e olhar os rostos? A Missa, o grande Sacramento da comunhão e da unidade, a que estamos privados de participar educou-nos suficientemente e leva-nos agora, com outra consciência, a um compromisso maior e mais fecundo de amor?
Abrimos o coração ao amor? Como o fazemos? Bastará escancará-lo na dor de uma despedida inesperada, chorando à pressa os que partem? Fazendo um telefonema adiado tantas vezes porque não há tempo a quem está mais distante? Cada um de nós e as nossas comunidades mais afortunadas e enriquecidas, com maiores possibilidades e viabilidades económicas, inspiradas nas comunidades da igreja nascente, são neste tempo profundo de deserto e desolação mais generosas e presentes às comunidades mais fragilizadas e pobres? Ainda somos capazes de valorizar a partilha fraterna entre os irmãos e as comunidades? Fazemo-lo entre nós? Nas nossas Dioceses, Vigararias, Ouvidorias ou Arciprestados?
Como não trazer à memória a aflição dos discípulos do Senhor reunidos um dia em lugar desconhecido e assombrados pela mesma aflição de um grupo significativo de pessoas famintas: “ Como poderá alguém saciá-los com pães aqui neste deserto?” (Mc 8, 4); “Não temos mais que cinco pães e dois peixes. A não ser que vamos comprar alimentos para todo este povo” (Lc 9, 13).
Chegará o que possuo? Tenho tão pouco!? Precisarei de ir comprar? E se falta para mim!?
Nestes inícios de caminhada rumo à Páscoa do Senhor, este ano celebrada, certamente, de modo tão extraordinário e invulgar, neste ainda longo tempo de deserto onde parece que a vida se tornou marginal e impura, onde continuamos a rezar estatísticas de números de infetados e de mortos sempre a melhorar (já não rasga o coração a dor pela perda de 130 pessoas?!), sinto que esta Palavra pode convidar a uma profunda e autêntica conversão de vida: “Como Eu vos amei”.
Amar cristãmente é amar com Ele. Por Ele e n’Ele. Amar é um contínuo e exigente “dar de mim” a partir de Deus revelado em Jesus Cristo, servo de toda a humanidade. Este amor exige sempre uma transformação profunda do coração e da vida toda. Um coração “vidente”. Uma gratuidade generosa. Humildade, verdade, capacidade de perdão. Liberdade perante as coisas e as pessoas, autenticidade.
O amor não é um jogo de estratégia ou de oportunidade, assunto de metodologia pedagógica ou tema inspirador de um plano de pastoral. É a identidade e a verdade mais profunda do que somos e devemos realizar enquanto cristãos, filhos de Deus, seu povo santo, a Igreja.
Só um amor iluminado pela luz da fé e pela razão, um amor despojado como Ele ensinou e viveu, marcado pela esperança e em atitude permanente de conversão tornará possível um autêntico desenvolvimento humano, uma sociedade mais humanizadora e justa, defensora inviolável dos direitos humanos e da vida.