Combater o medo dos outros e o antissemitismo

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real

Padre Vitor Pereira, Diocese de Vila Real

George Steiner, professor e crítico literário francês, descendente de judeus, falecido em 2020, lamentava em tempos, numa entrevista ao Expresso, que não temos aprendido absolutamente nada com a história e o quanto isso tem sido trágico para a história da humanidade. Referia-se mais concretamente ao “antissemitismo que está presente mesmo na minha amada Inglaterra. Está a crescer, a multiplicar-se”. Para ele era impensável que depois de se terem cometido as barbaridades e atrocidades contra os judeus ao longo da história e, sobretudo, no século XX, com o compromisso de não se odiar e aniquilar jamais um povo daquela forma, se voltasse a assistir a uma escalada de ódio e violência contra o povo judeu. Como é possível o ser humano não crescer e não aprender com os erros do passado, repetindo ações e recuperando sentimentos que geram sofrimento e desumanidade, que deveriam definitivamente ser lançados no mar do esquecimento ou no sótão da repulsa histórica?

Sinto apreensão e repugnância com algumas manifestações que estão a acontecer na sociedade portuguesa nos últimos tempos, e um pouco por todo o mundo, segundo dizem, de grupos nacionalistas racistas, de vários quadrantes ideológicos, pedindo a retirada de muitas pessoas que vêm de fora ou lançando o anátema sobre elas, nas palavras deles, inimigos da pátria portuguesa, e proclamando alguns princípios da sua cartilha xenófoba e nacionalista. Merecem uma clara condenação quer nos seus intentos, inconciliáveis com o respeito pela liberdade e a dignidade humana e violadores dos princípios do regime democrático em que vivemos, quer na sua linguagem, completamente despropositada, ofensiva e obsoleta. Repete-se a pergunta: será que não aprendemos nada com a história e queremos estupidamente repeti-la? Movimentos desta natureza mancharam tenebrosamente a história da humanidade, assentam em preconceitos e premissas erróneas (o mal está sempre no outro, sobretudo no imigrante, causa de todos os males), e não podem ter qualquer justificação e sustentação. E com toda a leviandade do mundo levantam-se punhos e fazem-se encenações a imitar os indescritíveis movimentos, que só espalharam a barbárie pela história. Guilherme d’Oliveira Martins afirmou esta terça-feira: “É preciso que nós, Cáritas, nós, cristãos, compreendamos exatamente que esse discurso que por aí anda, que é um discurso do medo dos outros, o medo da diferença, o medo da integração, o medo da diversidade, há medo relativamente a essas situações… E temos de recusar esse discurso fácil, que é o discurso de dizer cada um por si, cada um por si. Não”.

Não pode ser este o caminho a seguir, caminho que, como já vimos pela história, nos vai arrastar para o lamaçal do ressabiamento, do revanchismo, da intolerância, da injustiça, do sofrimento, da incompreensão mútua, da infernização da vida de todos. Chega de extremismo, ódio, racismo, xenofobia, violência, fanatismo nacionalista, de intolerância para com a diferença, combate e luta entre culturas, preconceitos imbecis, culpabilização injusta dos outros e do diferente pelos nossos males, de ver o outro sempre como uma ameaça à nossa felicidade e à nossa prosperidade, de alimentar sentimentos para destruir o outro. O caminho certo é a assimilação e promoção da tolerância, respeito por todos, pela diferença, pelas culturas, pela imigração, pela identidade de cada pessoa humana, pela dignidade humana de cada ser humano, que tem direito a existir, a ser e a viver em liberdade onde quer que se encontre.

Celebraram-se há dias os 80 anos da libertação do complexo dos campos de concentração de Auschwitz, na Polónia. No dia 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas libertaram os prisioneiros, onde eram submetidos a trabalhos forçados e a todo o tipo de humilhações e sevícias inimagináveis, e onde muitos foram exterminados. Só judeus, terão sido mortos mais de seis milhões, não apenas ali, mas noutros campos e lugares, não esquecendo outros grupos, como ciganos, poloneses, soviéticos, deficientes, entre outros. Como é que em pleno século XX se deu um acontecimento com tamanha barbaridade, o expoente máximo da maldade humana! A mais insana banalização do mal e a mais estupenda e brutal indústria de morte que jamais se inventou, promovida por um dos países mais desenvolvidos e cultos da humanidade! Dá que pensar!

Um estudo de 2023 mostra que entre os jovens americanos com idades entre os 18 e os 29 anos, 20% acreditam que o Holocausto foi um mito. Um mito? Acreditam baseados em quê? Mas será que esta gente não lê, não vê e não ouve? Outros 30% não acreditam nem deixam de acreditar. No Reino Unido, um em cada 20 inquiridos não acredita que o Holocausto aconteceu. Mas não se trata de acreditar. Está devidamente estudado e documentado pelos historiadores. O holocausto aconteceu. Há testemunhos vivos. Não faltam provas. Os edifícios dos infames e abomináveis campos de concentração estão de pé. É inaceitável que se possa alimentar a suspeição de tudo isto foi uma fabricação histórica e é uma manipulação com objetivos políticos. Não tem ponta por onde se lhe pegue qualquer tipo de negacionismo.

Infelizmente, devido à liquidez histórica em que vivemos, com graves consequências para a memória e para o respeito pelo passado, ao rejuvenescimento de algumas forças políticas e ideologias, e à existência atual de persistentes graves conflitos revestidos de crueldade e desumanidade, vemos o Holocausto a ser relativizado, manipulado e até negado, o que é inaceitável. Não há nada que se lhe possa comparar. Jamais devemos permitir que seja esquecido ou negado, e toda e qualquer forma de antissemitismo deve ser prontamente combatida, como já várias vezes o Papa Francisco enfatizou.

Custa-me, sobretudo, ver como as ideologias que fomentaram este horror histórico ainda têm partidários e adeptos e a ligeireza com que se fazem alguns gestos na praça pública ou se proferem certas expressões desprezíveis, sem qualquer empatia ou respeito pelos milhões de vítimas que fazem parte do cadastro da sua ação histórica. É preciso fazer memória do passado, mas, acima de tudo, tudo fazer para não o repetir, para que a forma de pensar e de agir de outros tempos não se repita. Nunca mais, foi o que pediram e pedem alguns dos sobreviventes deste tenebroso inferno terreno que viveram. Mas, infelizmente, a loucura humana parece não ter limites.

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