Coimbra: Missa da Ceia do Senhor com D. Virgílio Antunes

Caríssimos irmãos e irmãs!

É grande o mistério da fé, que celebramos na Eucaristia. Proclamamo-lo sempre que nos reunimos para escutar a Palavra da Salvação, repartir o Pão da vida, entrar na comunhão com Deus e com os irmãos.

A Missa da Ceia do Senhor, na noite em que Ele ia ser entregue, traz-nos sempre as palavras do Apóstolo que transmite em primeiro lugar a tradição que recebeu: o Senhor tomou o pão – Corpo entregue por nós -, tomou o cálice – a nova aliança no Seu Sangue -, e manifestou a Sua vontade em relação ao futuro: “fazei isto em memória de Mim”. O Apóstolo acrescentou ainda: “todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha”. Na fidelidade ao mandato recebido da primeira tradição, continuamos a celebrar na fé e na esperança e anunciar a morte do Senhor até ao fim dos tempos.

O mistério da fé que proclamamos em cada Eucaristia é o mistério da entrega de Jesus, que morre e ressuscita, o mistério realizado uma vez, mas que continuamos a celebrar, fazendo dele uma memória viva, é o mistério que nos dá vida e que nos salva.

À pergunta “como podemos entrar neste mistério de salvação? Como podemos participar nele?”, respondemos de forma simples: oferecendo a nossa vida com Cristo, por Cristo e em Cristo, ao Pai e em favor dos irmãos. Agora, por meio do sacramento da Eucaristia, verdadeira oração, e por meio da caridade o nosso estilo de vida.

A oferta da nossa vida ao Pai, com Cristo, tem, por isso, uma dimensão orante e uma dimensão existencial, sendo sempre participação do mesmo mistério da caridade de Deus que dá corpo à nossa caridade para com os irmãos. Isso mesmo nos oferece a Palavra da Escritura hoje proclamada na segunda leitura retirada da Primeira Epístola aos Coríntios: as palavras e o acontecimento da Última Ceia, em linguagem querigmática ou de primeiro anúncio e em contexto litúrgico, complementada pela narração do lava-pés retirada do Evangelho de João: o mandamento novo do amor, expressão da caridade cristã.

A dimensão litúrgica e orante e a dimensão existencial são absolutamente indissociáveis, porque juntas manifestam o verdadeiro significado da oferta de Jesus na tarde daquele dia, quando estava próxima a festa da Páscoa e da sua passagem deste mundo para o Pai.

O mistério da fé abre-nos sempre à espiritualidade da oferta de nós mesmos, no seguimento da oferta de Jesus. Não se trata da oferta de sacrifícios nem de coisas que tenhamos, mas compromete-nos enquanto pessoas, de corpo e alma. Ao entregar-se livremente à morte Jesus ofereceu-Se na totalidade de Si mesmo e não realizou uma ação de sacrificar algo que tivesse, algo de acessório ou algo de que quisesse prescindir, mesmo que tivesse para Si muita importância.

Recordamos que Maria, a mais fiel discípula de Jesus, também se ofereceu a si mesma ao Pai; ofereceu o seu seio virginal, a sua intimidade, a sua vontade, o seu corpo. Nada mais nem maior do que a sua própria pessoa, constituiu a sua oferta, a sua maternidade como possibilidade de entrega confiante ao Deus em quem acreditou. Recordamos também que os Apóstolos, após o primeiro chamamento, já se foram entregando ao Senhor ao longo da sua existência, mas acabaram por oferecer igualmente o seu corpo, a totalidade das suas pessoas, no martírio que sofreram e que selou indelevelmente a plenitude da sua oferta a exemplo do Seu Mestre.

A celebração da Eucaristia enquanto liturgia e, portanto, oração, permite-nos participar de forma sacramental na oferta de Jesus e manifestar a disponibilidade para a nossa oferta com Ele ao Pai. Dada a nossa condição humana e a nossa debilidade e pecado, mesmo quando nos oferecemos com sinceridade ao Pai com Jesus, fica sempre de fora algo de nós e resta-nos sempre a possibilidade de pedirmos ao Espírito que realize a obra que por nós não podemos realizar. É o espírito que reza em nós; é na comunhão com Ele que fazemos a oferta de nós mesmos, na certeza de que pela nossa força de vontade e pelas nossas forças humanas, não poderíamos fazê-lo.

A espiritualidade da oferta de nós mesmos constitui a via que nos permite entrar no mistério da fé que celebramos no sacramento da Eucaristia e é o caminho de crescimento na graça que aí recebemos.

As diferentes formas de oração que fazem parte da nossa piedade cristã conduzem-nos ao momento maior, que é a Eucaristia, e pela ação do Espírito Santo, preparam-nos para ela. Por sua vez, a mesma oração cristã permite-nos dar continuidade à realização desse caminho espiritual de configuração com Cristo em todos os momentos e dimensões da nossa vida.

Os nossos bens, o nosso tempo, o testemunho da nossa fé, a sinceridade do nosso coração, o nosso louvor e gratidão e tudo aquilo de que possamos dispor, são alguns dos sinais que, unidos ao pão e ao vinho da apresentação dos dons, manifestam a oferenda de nós mesmos. Valorizemos, irmãos e irmãs, a celebração da Eucaristia como centro da espiritualidade cristã e manifestação do mistério da fé, sempre disponível e acessível aos verdadeiros peregrinos e discípulos.

Antes da festa da Páscoa, e sabendo que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai, isto é, a hora da sua oferta ao Pai, Jesus toma uma toalha, põe-na à cintura e começa a lavar os pés aos discípulos. Nesta narrativa, o evangelista João oferece numa linguagem clara a certeza de que a caridade é a marca distintiva e nova da vida de Jesus: ela está antes, está durante e está depois, está sempre, é a sua vida, é a sua pessoa, é o seu amor, porque Deus é amor.

A mesma narrativa do evangelista João, faz preceder o gesto do lava-pés, com a referência à consciência que Jesus tinha acerca da sua autoridade e conclui com a sua exortação: “também vós deveis lavar os pés uns aos outros… para que, assim como Eu fiz, vós façais também”.

No simbolismo do lava-pés Jesus mostra toda a autoridade que está na Sua caridade divina traduzida em gestos reais e concretos para com todos nós que, apesar de pecadores, somos incondicionalmente amados por Ele. Esta é a novidade cristã que celebramos na Eucaristia, que a precede e que tem continuidade depois dela nos caminhos da nossa vida.

Quanto mais caridade mais autoridade e mais verdade na celebração do mistério da fé, mais verdade no culto que prestamos a Deus e na oferta de nós mesmos ao Pai.

Quanto mais caridade, mais autoridade nas nossas relações humanas: entre os esposos, na vida familiar, no mundo laboral, social, económico, político e cultural. Os caminhos da paz, da justiça e do respeito da dignidade humana, que tanto desejamos, só serão possíveis quando a lógica do poder e do domínio de uns sobre os outros, pessoas ou povos, passar a ser a lógica divina e humana da caridade enraizada nos nossos corações.

Quanto mais caridade, mais autoridade na vida das comunidades cristãs, na ação pastoral, no testemunho e no anúncio do Evangelho. A Igreja, serva da humanidade que peregrina para Deus no meio dos homens, só na caridade encontra a autoridade que lhe permite apresentar-se livre diante de todos e ser o sinal da salvação de Deus.

O mistério da fé que celebramos na Eucaristia é o mistério da caridade de Deus que conhecemos em Jesus Cristo morto e ressuscitado, é o mistério da Páscoa de Jesus e da nossa Páscoa. Celebremo-lo, por isso, na pureza e na verdade.

Coimbra, 28 de março de 2024
Virgílio do Nascimento Antunes
Bispo de Coimbra

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