Coimbra: Homilia da Celebração da Paixão do Senhor

Nesta tarde de Sexta-Feira Santa a cruz ergue-se como o sinal maior do amor de Deus e apresenta-se como o único caminho válido do amor humano. Diante dela as palavras são simples adornos e o silêncio de contemplação é gerador de gestos que protagonizam a vida. Nela se revela a sabedoria de Deus, a única que ilumina todos os caminhos dos homens e os faz ser sempre precursores de novas auroras de ressurreição.

“Sou Eu”.

Esta expressão do Evangelho segundo S. João que se lê na liturgia deste dia não é somente a afirmação de uma identidade humana, mas tem, na interpretação da Escritura, um valor teológico, ou seja é uma afirmação de que Jesus é o Filho de Deus.

Diante dos que O procuram para lhe dar a morte, Ele avança, cumprindo o que fora profetizado nos cantos do Servo do Senhor: não recuou um passo, apresentou-se diante deles, não vacilou.

Enquanto Filho de Deus, “ele próprio entregou a sua vida à morte”, obedeceu sempre e em tudo, amou até ao fim. Poderia Deus agir de outro modo, Ele que tem entranhas de misericórdia e se comove infinitamente com o sofrimento e com a morte dos seus filhos? Poderia deixá-los entregues a si mesmos e no caminho da perdição eterna, o fruto dos seus pecados? Não. Porque como declara o profeta Oseias, Ele é Deus e não um homem, é o Santo de Israel.

Jesus avança confiante no Pai e não permite que alguém duvide da sua decisão: “Já vos disse que sou Eu. Por isso, se é a Mim que buscais, deixai que estes se retirem”. E não permite sequer que alguém use de violência para o livrar de cumprir a sua missão e de salvar aqueles que lhe foram confiados pela entrega da sua vida à morte: “mete a tua espada na bainha. Não hei-de beber o cálice que meu Pai Me deu?”.

Se há um preço a pagar para que todos sejam salvos, não há que hesitar nem recuar. Esse é o contributo que Lhe cabe dar para que isso aconteça; esse é o caminho a percorrer e nisso consiste a prova do seu amor, que nunca é a busca do próprio bem pessoal, mas sempre a procura desinteressada do bem dos outros.

Quando procuramos a novidade do cristianismo, o seu distintivo inequívoco, é aqui que o encontramos. Não seria autêntico nem verdadeiramente novo sem os acontecimentos que celebramos em Sexta-Feira Santa, porque seria porventura uma mensagem bela, mas não provada pelo sacrifício e pela morte de cruz.

De entre todos os raciocínios e argumentos que possamos aduzir para referir a verdade da fé cristã, sobressai um, qual selo da sua autenticidade: a morte de Cristo na cruz, a prova do amor de Deus por nós.

“Não sou”.

Num contraste bem claro com o “sim” de Jesus, expresso na sua solene apresentação por palavras e pela oferta da sua vida na cruz, próprio do modo de agir de Deus, surge o “não” de Pedro, expresso na sua fuga a Deus, à cruz e à entrega. Às perguntas insistentes que lhe dirigem durante o julgamento, acerca da sua identidade, ele responde por três vezes, “não sou”.

Nas palavras e na atitude de Pedro reflete-se este que é, tão frequentemente, o modo de agir dos homens, o nosso modo de agir, diante das exigências do amor de Deus e do amor dos homens.

Centrado em si mesmo, obcecado pela defesa da sua própria vida, não aceita a cruz, fecha-se ao amor e acaba por permitir a morte e, quando não, por protagonizar uma cultura de morte. O grão de trigo lançado à terra, se morre, dá muito fruto, se não morre, fica só, como Jesus dissera.

“Estava junto à cruz de Jesus sua Mãe…”

O Evangelho não pode deixar de salientar a outra versão das possíveis atitudes humanas diante de Jesus e diante dos irmãos. Fá-lo por meio da referência a Sua Mãe e às outras mulheres que acompanham e permanecem de pé junto à cruz, participando de todos os momentos e sentindo elas mesmas como sua a cruz de Jesus.

Desta maneira o Evangelho nos sugere o modo de nos situarmos diante da cruz de Jesus, diante da nossa cruz e diante da cruz dos homens, nossos irmãos, de pé, e afirmando claramente por palavras e atitudes: aqui estou. Eis o modelo para o cristão, eis o caminho da Igreja, figurada na pessoa de Maria, a Mãe de Jesus, como é característica do evangelista S. João.

Nesta tarde de Sexta-Feira Santa, contemplando Jesus suspenso na cruz, confrontamo-nos com a nossa resposta ao amor de Deus.

Onde está o nosso coração? – perguntava, há dias, o papa Francisco.

Onde está o nosso coração? – pergunta-nos o Senhor, hoje, a nós.

Sem coração, sem amor e sem cruz acolhida e aceite, a nossa e a dos outros, não há salvação para a humanidade já sobre esta terra. E todos os dias nos confrontamos com os sinais da ausência de coração nas famílias que não acolhem o amor que se sacrifica pela vida, pela unidade e comunhão do seus membros, nas políticas que não respeitam a dignidade da pessoa humana, nas relações laborais que exploram e escravizam, nos detentores do capital que não ouvem o clamor dos pobres, nos crentes que esquecem que apenas a caridade jamais acabará.

Respondendo ao convite do papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelii gaudium, nós, os cristãos, quando se trata de agir e assumir responsabilidades no mundo, seremos os primeiros – o que ele chamou “primeirear” – adiantar-nos-emos a todos os outros, tomaremos a iniciativa quando se trata de tomarmos todas as cruzes humanas, próprias e alheias.

Como Jesus, diremos: sou eu, aqui estou; como Maria, permaneceremos de pé, sentindo a cruz dos outros como a nossa própria cruz.

Coimbra, Sé Nova, 18 de abril de 2014

Virgílio do Nascimento Antunes

 

Partilhar:
Scroll to Top
Agência ECCLESIA

GRÁTIS
BAIXAR