Coesão e acolhimento do outro devem ser marcas da Europa

O padre Duarte da Cunha, foi secretário-geral do Conselho das Conferências Episcopais da Europa (CCEE) durante uma década. A poucas semanas das eleições europeias, fala das várias realidades que encontrou no Velho (cada vez mais) Continente, das raízes cristãs por redescobrir e da coesão social que pode assegurar uma resposta condigna à crise migratória e aos populismos crescentes.

Entrevista conduzida por Ângela Roque (Renascença), Octávio Carmo (Ecclesia)

Fotos: Manuel Costa (Ecclesia)

Agência Ecclesia/MC

Acabamos de celebrar mais um Dia da Europa e estamos em contagem decrescente para as eleições europeias. Tendo em conta a sua experiência de vários anos, de contacto com esta realidade em vários países, do ponto de vista da Igreja e não só, o que mais o preocupa na Europa hoje?

Poderíamos dizer que o que mais falta hoje na Europa – aquilo que o Papa Francisco chama a velhice da Europa -é a falta de esperança e empenho, achar que as coisas não podem melhorar. Tem a ver com o envelhecimento da população, as crises demográficas, o chamado inverno demográfico, mas também com uma perda de alma da Europa, uma certa desorientação sob a identidade da própria Europa.

Isso é transversal aos países da União Europeia, aos países em geral. Paradoxalmente, são os países de Leste, talvez porque saíram de regimes ditatoriais, onde a esperança estava atrofiada, que mais mexem com a Europa, numa perspetiva de construção. Também por isso são mais rebeldes a certas orientações…

A falta de esperança e empenho no futuro, a falta de querer qualquer coisa, de nitidez para onde se quer chegar, é um problema generalizado que faz com que muitos desistam. Estão metidos na sua vida, nas suas coisas, não se interessam com o destino do bem-comum, do seu país, muito menos com o destino dos europeus…

 

Sentiu essa falta de esperança nestes anos em que esteve no CCEE? Mesmo do ponto de vista da Igreja?

A falta de esperança está ligada ao individualismo: as pessoas não querem construir uma coisa comum porque querem construir o seu conforto. Isto indica falta de evangelização. Se pensarmos bem, o que faz com que uma pessoa possa ter um certo ímpeto para construir, um chamamento, uma dimensão mais vocacional, diria quase.

Com a secularização generalizada, com o desaparecimento de Deus e o individualismo muito concentrado no eu, na autoestima e realização pessoal, há uma crise para querer fazer algo para o destino dos meus filhos, para os outros, ou para as próximas gerações, o consumismo. Mas isto são aspetos negativos, a Europa não é só aspetos negativos.

 

A hierarquia católica e os últimos Papas têm chamado sistematicamente à atenção para o que colocou sobre o abandono das raízes cristãs da Europa – o secularismo, o abandono da fé… São questões que vão para além da própria religião.

Encaro as raízes cristãs da Europa em três blocos: uma raiz cristã relacionada com a espiritualidade da Europa. Os europeus são pessoas religiosas, basta andar pela paisagem europeia e vê-se nas igrejas, os locais de oração, santuários, ainda há muita gente a rezar e muita devoção por piedade popular ou formas mais sofisticadas.

Há um abandono da prática dominical, há uma diminuição do número de cristãos, mas há também uma espiritualidade cristã, uma vida interior dos europeus. A perda da prática da vida espiritual é um certo afastamento das raízes cristãs e isso tem consequências no resto da vida.

Uma outra raiz cristã relaciona-se com os valores, os princípios morais e a orientação da vida, a mundividência cristã, que tem a ver com o amor, a caridade, a solidariedade, o respeito pela dignidade da vida da pessoa, os grandes princípios da Doutrina Social da Igreja (DSI). Os nossos bispos acabaram de publicar uma Carta Pastoral, «Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da Doutrina Social da Igreja», onde sublinham esta importância. Se estas referências cristãs desaparecem, são substituídas por outras mais utilitaristas e consumistas, de outra ordem. Esse abandono das raízes cristãs no âmbito dos valores é também uma perda.

Há ainda um terceiro fator, que é o que a Europa entende como a sua vocação no mundo global. A globalização implica uma consciência de cada um sobre o seu papel neste mundo global. Todos somos específicos, especiais, únicos. E a Europa tem a sua missão.

No mundo, a Europa teve sempre um papel, às vezes menos bom, mas teve um papel e levou muita coisa boa: a fé cristã, o desenvolvimento, a tecnologia, os direitos do Homem que hoje temos e, genericamente são aceites no mundo – podemos dizer que nem toda a gente aceita os Direitos do Homem pelas mesmas razões, mas não há dúvida de que a raiz que deu origem a esta afirmação dos Direitos do Homem depois da II Guerra Mundial, é uma raiz cristã. Há um entendimento da humanidade e da sociedade cristãmente.

 

Quando terminou o segundo mandato como secretário da CCEE deixou uma nota otimista de esperança, de uma vida eclesial forte na Europa. Teve oportunidade de contactar com diversas realidades, sobretudo no Leste, desconhecida da maioria. Sente uma forte esperança na vida eclesial, capaz de dar um sinal diferente para a Europa de hoje?

Julgo que a esperança virá do que podemos chamar de comunidades vivas, que podem não ser maioritárias, mas são vivas e coesas. É interessante ver que há, por toda a Europa, norte ou sul, Noruega a Malta, Moldávia à Irlanda, vida cristã viva. Talvez não sejam as maiorias, talvez haja crise e conflitos, muitos problemas, mas há lugares onde esta experiência viva, gente a converter-se, pessoas a pedirem o batismo, comunidades a serem construídas.

Gente a querer ter uma vida interior e espiritual cristã, que não é o «new age» à procura de um vazio para descansar, mas a procura de Deus para o encontrar e a procura da verdade e do encontro com Deus, a experiência em presença de Deus. O específico da espiritualidade cristã.

Há comunidade coesas, de amigos, amizades, apoios e famílias, obras de caridade e misericórdia que são muito visíveis. Bastaria imaginar que se na Europa desaparecessem as obras de caridade promovidas pelos católicos, em cada um dos países europeus, o mapa seria drástico, trágico mesmo. Há muita experiência viva e bonita.

Assim como há muitos jovens, famílias e políticos – talvez gostássemos que fossem mais – mas há alguns que pensam e querem pensar o bem-comum e cuidar da pessoa, defender a vida. Por isso não é algo morto, antes pelo contrário. Mas pode ser uma mudança.

 

O «new age» que se fala revela que as pessoas procuram a dimensão espiritual. A Igreja Católica, se calhar, nem sempre consegue responder a esse desejo e procura…

Há uma procura do religioso na Europa. As sondagens do Eurostat indicam isso claramente: os europeus, ao contrário do que talvez se tivesse pensado nos anos 60, não se secularizaram no sentido de considerarem a dimensão religiosa ou a sua relação com o transcendente inútil.

Não há dúvida de que a experiência religiosa cristã, que não é simplesmente a experiência de um encontro com o transcendente, mas com Jesus Cristo, essa que era maioritária num ambiente que chamávamos de Cristandade e que hoje não é maioritária, não deixa de ser verdadeira e de existir.

 

Falávamos da dimensão social do trabalho das comunidades católicas: há um tema que tem gerado tensão que são as migrações e refugiados. Conhece muito da realidade europeia porque teve a oportunidade de percorrer os vários países. Há várias tensões entre a forma como diferentes comunidades católicas olham para esta realidade?

Há e é preciso reconhecer isso, sem pretender que todos façam o mesmo, porque as realidades e experiências são diferentes. Há, por vezes, uma certa demagogia da comunicação social, uma não compreensão, não ir ao fundo das razões que colocam nos títulos bispo do país A contra o do país B, e as coisas são mais profundas.

Julgo que há uma ideia generalizada na Europa de que existe necessidade de criar uma certa coesão e identidade, que vivemos em tempos de grande desagregação social e de falta de coesão. O tema da coesão social é dos que mais se ouve falar nos últimos anos. Não há dúvida que interfere com a questão dos imigrantes.

A Europa cristã olha para cada pessoa, migrante, refugiado, como pessoa e por isso, tem de equilibrar as duas coisas: a coesão e o acolhimento do outro.

O que a Igreja tem dito, em geral, desde os Papas aos bispos, deste ou daquele país, é que as duas coisas têm de estar unidas. Os imigrantes não podem entrar num ambiente desagregado. Mas isto não significa que eles não podem entrar, significa antes que temos de tomar consciência do que está a acontecer à Europa, a falta de identidade e coesão social, falta de amor à vida e à tal esperança que falava no início, faz com que as pessoas vivam egoisticamente, fechadas em si.

Não é tanto entrar mais ou menos imigrantes, mas o que podemos fazer para que a Europa não se sinta ameaçada pela chegada dos imigrantes; antes pelo contrário, se sinta chamada e ajudada, porque há muitos lugares onde os imigrantes são ajuda no trabalho e porque trazem a juventude e a esperança. Mesmo na Igreja há muitas comunidades imigrantes, não só europeus mas africanos e da América latina, de comunidade asiáticas, que são muito vivas e dão uma vitalidade à Igreja local.

A experiência da chegada de imigrantes e de refugiados, além de provocar a caridade dos que recebem, desafia a uma certa consciência de quem somos, que identidade temos e qual a nossa verdade. Por isso não temos medo.

Mas estas coisas são um bocadinho teóricas: uma situação é entrar um imigrante na Alemanha onde há muito dinheiro e pode ser integrado; outra é na Hungria, onde há pouco dinheiro e não há integração. Um bairro de imigrantes refugiados, que são acolhidos e quase há uma cidade à margem das grandes cidades, onde eles têm tudo, escolas, onde são integrados com entrevistas individuais… outro cenário é em países mais pobres onde não existem infraestruturas e, de repente, ficam todos ali.

 

Há desigualdade na forma como a Europa é solidária, na forma como se acolhe os refugiados. Devia haver mais atenção para a raiz do problema, dos países de origem?

Essa é a posição geral que os bispos da Europa defendem. Além de provocar um ambiente acolhedor, como dizia, de coesão, precisamos de cuidar da nossa comunidade para acolher. Não é uma alternativa, as duas coisas podem estar em simultâneo.

Além disso, olhando para as pessoas concretas que chegam, sobretudo para os refugiados que chegam desesperados, nós somos chamados a ter atenção que é preciso desenvolver os outros países. E ai perguntamo-nos: quem governa a nossa Europa? São interesses económicos, são pessoas que querem o desenvolvimento do mundo e das pessoas? Quais os interesses? Porque não se empenham no desenvolvimento dos países mais pobres? Porque continua a haver venda de armas, hipocrisia nas atitudes para com os países em guerra? Estas questões deveriam fazer-nos refletir, agora à beira de eleições europeias.

A Europa que queremos sente-se com uma missão para o mundo? As tais raízes cristãs que falava… Somos capazes de levar a consciência da dignidade da pessoa, da paz e do amor, da solidariedade aos outros países»? Ou desprezamos?

 

As migrações são um dos principias problemas das Europa, é incontornável. Na campanha está-se a falar pouco disto?

Depende de país para país.

 

Em Portugal em concreto?

Somos um país acolhedor, os imigrantes são bem-vindos, mas não querem vir muitos.

 

E os que vêm, muitos não ficam.

E nós estaríamos dispostos a receber mais. Nesse sentido somos um país simpático, acolhedor. Quem fica sem vontade de se ir embora, acaba por agradecer – há casos disso. Não estranho que em Portugal não se fale muito do problema.

 

Mas há notícias de que o Governo português não tem aproveitado os fundos comunitários que têm sido enviados para acolher as migrações. Parece que há um desinteresse por este tema?

É muito complexo, não sei o que se passa a nível político, nos bastidores. Não sabemos tudo, e tenho pena, porque vejo na sociedade e na Igreja em Portugal uma grande vontade, disponibilidade e empenho para acolher e fazer mais, para promover.

Organizei alguns encontros com a pastoral dos migrantes pela Europa fora, e a experiência portuguesa era apresentada, muitas vezes e reconhecida, como uma experiência piloto de cooperação entre a sociedade e a Igreja.

Se me diz que o Estado não está a aproveitar os fundos que poderia ter para fazer mais, eu diria que tenho pena disso. Porque não o faz? Quais os interesses que estão por detrás? Não sei.

Agência Ecclesia/MC

Agora como pároco de Santa Joana Princesa, em Lisboa, mantém o seu olhar sobre a Europa: a paróquia está a organizar um ciclo de debates «Qual Europa?» Surge neste tempo de preparação para as eleições europeias. É importante que a Igreja tenha iniciativas como esta que vão para além da espuma dos dias?

Julgo que muito povo de Deus, os portugueses, têm solicitado que falemos da Europa e estão preocupados e conscientes da importância do que acontece na Europa, com reflexo na vida em Portugal. Mas não se percebem todos os porquês e os mecanismos. As pessoas querem perceber mais. Era ótimo que a campanha eleitoral, em vez de debater questões muito internas, nos ajudasse a perceber o funcionamento da Europa.

 

Porque são eleições europeias…

E não só como é que funciona a estrutura. mas também quais as políticas comuns, os objetivos, as propostas, como pensamos a integração.

A Europa, o Papa Francisco diz muitas vezes, é uma família de povos. E é importante que se mantenha assim – ele fala da multipolaridade. Não é uma Europa que olha toda para uma direção, mas podemos ter diferenças e isso é uma riqueza.

Estes povos, que são diferentes, têm coisas comuns, como as raízes cristãs, e têm destinos comuns, porque estamos num mundo globalizado. Se os países europeus não estiverem unidos, acabam absorvidos por uma cultura dominante, que não é libertadora, mas antes limitadora.

Para voltar à questão: era bom que conseguíssemos perceber melhor – e foi isso que me levou a propor um ciclo de conferências –as partes económicas, políticas mas também as que não sendo da competência direta da União Europeia são muito marcantes na União, como as ideologias, as questões da vida e da família, os lobbies ideológicos em Bruxelas que funcionam de maneira organizada, até reconhecida. Não se trata de uma acusação, é algo reconhecido.

Mas esta é uma batalha que lá existe e a Igreja está presente nessas batalhas com uma proposta, não de grupo de interesses, mas como representante da sociedade geral, com uma proposta de valores sociais. São este género de questões precisamos perceber, os seus mecanismos. Há mais de 30 mil funcionários da União Europeia em Bruxelas, não podemos perceber tudo.

 

Os bispos portugueses aprovaram a Carta pastoral «Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da Doutrina Social da Igreja», onde, entre outras questões, manifestam-se muito preocupados com o crescimento da xenofobia, os movimentos de desagregação que ameaçam a coesão da Europa. São alertas importantes feitos pela Igreja, ainda mais em tempo de eleições?

A carta está muito interessante, porque começa com as questões da vida, da essência da vida, da dignidade humana para a forma como a vida humana vive e, depois, para a organização da sociedade onde essa vida humana se desenvolve.

Os movimentos populistas ou xenófobos, assim como os movimentos ideológicos do «Gender», ou mais complicados como o que chamo de homologação – uma palavra que vem do italiano, ou seja, esta tentativa de homogeneizar toda a realidade. Se pensarmos todos da mesma maneira, temos todos os mesmos interesses, sermos todos forçados a seguir a cartilha ideológica vigente. Penso que este é um problema que a Europa atravessa.

O problema dos populismos que desagregam identitários em excesso e os problemas mais globalistas ou internacionalistas que tentam dissolver as identidades são dois polos que se promovem uns aos outros, paradoxalmente: quanto mais existe alguém a dizer que a Europa a construir tem de ser unida, uns Estados Unidos da Europa, mais aparecem uns a dizer que temos de nos separar, para não haver esse perigo; quanto mais aparecem uns a dizer que temos de viver em tensão uns com os outros, mais aparecem outros a dizer o contrário.

A inteligência católica com que esta União Europeia foi pensada era a capacidade de cada um ser mais ele mesmo, na medida em que é mais com os outros.

Não é uma oposição ser com e ser eu. Esta é a experiência do amor, a lógica da solidariedade, em que o país ganha por poder ajudar porque no todo somos desenvolvidos.

 

A Europa está visivelmente envelhecida, a vários níveis. A Igreja católica tem procurado com o seu discurso e a atenção que dedica à realidade juvenil, que os jovens se sintam cada vez mais empenhados e tenham voz ativa, até na vida política. De que forma uma renovação de lideranças, inspirada em valores que acabou de referir, pode ser importante para combater esses perigos na União europeia?

Temos esperança. A Igreja na Europa tem tentado enfrentar a questão do envelhecimento em duas formas: valorizando o idoso enquanto tal, a pessoa na sua dignidade, até ao seu último respiro. A pessoa tem esse valor e não lhe queremos nem retirar nem acelerar a morte porque ela vale.

A outra dimensão é dizer: a Europa não pode ser só envelhecida. A riqueza dos que viveram mais anos é a possibilidade de passar o testemunho a outros. Queremos ter jovens que possam receber o testemunho – o Papa fala da relação entre avós e netos como importante –, para que estes jovens possam pegar nas rédeas dos destinos do mundo com valores que, não só herdam, mas que desenvolvam. Uma herança não fossilizada e pronta, mas que herdo como algo vivo, desenvolvo.

É isso que faz com que haja propostas novas e criativas. O Papa fala que a criatividade é importante na Europa, uma Europa fecunda e criativa.

E Os jovens políticos nos países e na Europa terão de ser pessoas bem formadas e que vivam em alguma experiência comunitária. Não podem ser um «Robin Hood» que salva o mundo. É preciso gente e grupos de reflexão e que sejam movidos pelo amor, não é só por um jogo de interesse ou por um combate, mas através do diálogo e da promoção do bem, consigam melhorar as coisas.

Uma nova geração começa a nascer que já não é tão anticatólica como a anterior, até porque o catolicismo não tem tanta expressão pública como tinha, já não faz sentido em alguns países da Europa ser-se anticatólico. Faz sentido, ao mesmo tempo, procurar saber o que se perdeu pelo caminho, as tais raízes e valores, os tais ideias e esperanças que se a Europa não tiver e os jovens europeus não tiverem, também não se constrói.

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