Cinema: Uma história de amor

Num futuro próximo, Ted é um homem que vive em Los Angeles e se debate por fazer o luto do seu casamento, dissolvido ao cabo de um penoso processo. Mergulhado na solidão, ganha a vida redigindo, na sombra e por conta da empresa onde trabalha, cartas de amor e carinho personalizadas para os clientes, fabricadas para celebração de ocasiões especiais.

Ao passar por um quiosque, cruza-se com Samantha, não uma bela e sedutora mulher mas um sistema operativo de ponta programado para entabular conversa através de inteligência artificial… sob uma sensual voz de mulher.

Entusiasmado com a novidade, torna-se cada vez mais ligado e dependente deste novo sistema que se transforma na sua companhia. A intuição, sensibilidade e sentido de humor de Samantha são cada vez mais cativantes e a conversa, cada vez mais elaborada e aparentemente mais profunda, cria aos poucos em Ted uma sensação de pertença, de intimidade e cumplicidade que até aqui não encontrara em mulher alguma. Em breve, crê-se apaixonado e assume uma insólita relação com esta personagem…

Quem hoje navegue com destreza e amplitude nas redes sociais, certamente já se apercebeu da possibilidade de início, sobrevivência, ou recuperação de relações que a virtualidade permite. Seja a conhecer novas pessoas, manter a conexão com amigos, a recuperar o contacto com antigos colegas de escola ou até mesmo um amor remoto, se não por experiência própria sabe por exemplo de alguém da sua rede que esse tipo de relacionamento, sendo virtual… tem hoje, de alguma forma, existência.

Não poderá por isso ser tão surpreendente um argumento deste género criado e trazido ao cinema, no caso por Spike Jonze, mesmo não deixando de nos parecer insólito. Em 2007, num filme que correu acanhadamente nos nossos ecrãs, ‘Lars e o Verdadeiro Amor’ (‘Lars and the Real Girl ‘) contava, pela mão do realizador Craig Gillespie, uma história semelhante, ternurenta e curiosa, protagonizada por um homem que, padecendo de um síndrome próximo do Asperger e por isso particularmente vulnerável ao imprevisto das relações reais, se apaixona por uma boneca insuflável encomendada na internet que passa a habitar a sua casa e de quem trata, dentro da sua zona de conforto, com todo o carinho respeito e devoção.

Aqui, além de um argumento em tudo mais elaborado, construído de forma inteligente e sob uma realização mais arrojada, outra das grandes diferenças jaz na proximidade do protagonista a um universo mais amplo, por exemplo o da solidão – hoje um síndrome que, se não mora em muitos de nós, mora mesmo ao nosso lado, afetando uma vasta percentagem de população no mundo inteiro. Samantha, como a tal boneca, responde simultaneamente a um desejo e a um temor profundo de relação, que existem numa dimensão não corpórea, para Ted como para Lars, como projeção inócua e quase asséptica de si próprios – do seu anseio, medo e (in)capacidade.

Neste ponto, mesmo sem chegar ao extremo do amor projetado por via virtual, o cruzamento, mais sereno ou conflituoso entre o imaginário e o real que vemos no outro, aquele que dá sentido à nossa própria existência, é comum a todos nós. E é pela atenção particular às fronteiras que estabelecemos ou atravessamos na relação, onde mesmo sem recurso a diminutos aparelhos ‘incrustados’ nos ouvidos como o que Ted utiliza não estamos por vezes muito longe de manter alojado uma espécie de ‘chip’ comandado por um controlo remoto, um ‘outro alguém’ que somos nós mesmos; pela atenção que o filme desperta sobre o sustentáculo da comunicação/relação virtual, ausente do risco mas também do fulgor que a relação materializada, tocada e olhada importa, que este filme, com mais uma belíssima prestação do ator Joaquin Phoenix, a todos pode interessar.

Margarida Ataíde

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