Cinema: O Gebo e a Sombra

O desafio, diz, veio de um amigo: fazer um filme sobre a pobreza. Foi feito há anos e Manoel de Oliveira considerou-o difícil. Difícil, não impossível. Anos passados surge “O Gebo e a Sombra”. Um olhar sobre a obra homónima de Raúl Brandão, que o cineasta recria de forma mestra, com grande simplicidade mas nenhum simplismo, que é também um olhar sobre os paradigmas existenciais do passado e do presente, sobre Portugal e os portugueses, sobre a pobreza, a honra, o sonho e a esperança, oferecendo uma profunda reflexão sobre o poder do dinheiro.

Apesar da idade e do cansaço, Gebo prossegue a atividade de cobrador numa firma, modesto garante do sustento da família que inclui a mulher e a nora, Doroteia e Sofia. A ausência de do filho João, que oito anos antes partiu em busca de uma vida melhor, preocupa-os. Enquanto Doroteia vive na esperança do reencontro com o filho, a sua ausência provoca uma estranha inquietação em Gebo e na nora.

Eis que João aparece e às reflexões sobre um velho mundo onde parecem assentar os alicerces da casa que habitam, sucede uma ‘discussão’ sobre a condição humana e sua possibilidade de transformação, o sofrimento ou vislumbre para além deste, discutindo ainda a legitimidade moral da pobreza e do dinheiro.

Rodado no espaço exíguo de uma casa, sem referência visual à sucessão do tempo, o Gebo e o seu filho, são protagonistas de uma profunda reflexão sobre a existência humana e o devir, expresso na (in)evitabilidade de uma certa condição. Em tudo representativo de um mundo além do concretamente visível na obra, uma magistral direção fotográfica e o impressionante domínio fílmico, garantem uma plasticidade surpreendente, no diálogo cromático, na relação luz/sombra e nas texturas, relação que é a das próprias personagens, o que lhes confere dimensão e profundidade, jogadas entre si na sua identidade, individual e comum e no modo como se interpelam.

Uma obra que, de Raúl Brandão para Manoel de Oliveira passa, nas palavras de Luís Miguel Cintra, da “pobreza para o poder do dinheiro”, mas também do pessimismo e desespero para, apesar de tudo, a esperança.

Margarida Ataíde


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