Cinema: O Filho de Deus

Um ano após investir na produção da série ‘A Bíblia’, particularmente popularizada em Portugal pela participação do ator português Diogo Morgado, o produtor Mark Burnett, conhecido pelo seu investimento em reality shows como ‘Survivor’, ‘The Apprentice’ e ‘O Lago dos Tubarões’, decidiu arriscar a estreia em cinema de parte dessa empreitada, na quota respeitante à vida de Jesus.

Christopher Spencer, encarregue na série da realização de três dos seus dez episódios – Missão, Traição e Paixão, dirijge esta nova combinação de imagens, de que resulta ‘O Filho de Deus’.

Inicialmente narrado em voz-off pelo apóstolo João, o filme é alavancado por destaques de ‘A Bíblia’, onde evocamos em imagens fugazes e algo arbitrárias na sua expressão, Adão e Eva, Noé, Abraão e finalmente o nascimento de Jesus. A história propriamente dita começa com o encontro de Jesus com os apóstolos, junto ao mar da Galileia e termina com Jesus ressuscitado, aparecendo aos apóstolos.

Conseguir que uma obra cinematográfica construída de raiz para exibição em pequeno formato resulte razoavelmente em grande ecrã pode ser tão difícil como um camelo passar pelo buraco de uma agulha, já que, se a atenção do espetador potenciada pelo aumento de escala torna um filme mais apelativo à partida, as suas fragilidades são necessariamente também mais evidentes. No caso, este ‘Filho de Deus’ padece de várias, e não apenas de natureza técnica e narrativa mas, no seu fraco e liberdades de conteúdo, teológica.

Aparentemente, nem a capacidade de investimento de Mark Spencer, ultimamente apostado no mercado religioso a que a queda de receita na indústria cinematográfica não será alheia, nem a sua experiência religiosa, no caso evangélica, puderam prevalecer a um espírito de exploração de bilheteira que toma o espetador por o mais elementar possível, em vez de o valorizar, garantindo qualidade técnica, temática e artística do filme.

Uma visão extremamente superficial e redutora de Deus e de Deus Feito Homem, próximo e íntimo, sem qualquer aproveitamento da riqueza gramática quer do Novo Testamento quer da sétima arte. Pior, em interpretações abusivas do texto original e de natureza teológica maioritariamente centradas na ideia de um Jesus investido de poder (as alusões multiplicam-se…), um Filho quase sem Pai (o uso da primeira pessoa do singular também se multiplica…) e investido da missão primordial, expressa, de destruir o poder instituído, ‘mudar o mundo’ e ‘levar a mensagem ao centro do poder’. Fragilidades constantes expressam-se em planos fechados, sequências reduzidas ao mínimo, algumas mesmo truncadas numa tentativa permanente de iludir a má qualidade dos atores e a clara incapacidade para compreender o mistério de Cristo. Uma deficiente encarnação do Verbo, num Jesus a quem se tenta compensar a falta de carisma pelo estilo à vez declarativo, imperativo ou malandro com que se refere, mais uma vez, ao poder que detém seja para perdoar pecados ou qualquer outra coisa, ou numa candura francamente artificial.

Os milagres sucedem-se, a multidão adere, Caifás e Pilatos conspiram, Tomé duvida… e Jesus afirma. Afirma que é quem é, ou melhor, o que tem. Mas O que conhecemos, Aquele que naquele tempo se esperava mas não assim, e que desde então nos espera exatamente assim, expressão do amor incondicional de Deus por nós, tocando o coração dos homens, feito um como nós, que se fez pobre pelos pobres, que se humilha pelos humilhados, que veio para nos salvar… não se revela.  

Lamentavelmente, naquela que podia ser uma excelente oportunidade para um encontro ou reencontro com Cristo, fundamento de Amor, descoberta de um Homem Novo e de uma renovada relação com Deus, potenciando o cinema como lugar teológico, expressão de beleza e de sagrado, para crentes e não crentes, motivo de celebração pela sua propagação em ecrãs por todo o país, arrisca-se encontrar algo com que nem a nossa relação com Deus se identifica nem a não relação de outros se poderá alguma vez identificar…

Margarida Ataíde

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