Cinema: ‘Noé’ …ou ‘não é’

Aguardada estreia, mercê do potente motor comercial de que foi investido desde o início do projeto e da expectativa criada em torno de uma agenda mediática bem oleada, ‘Noé’ chega finalmente às salas de cinema portuguesas.

Após várias tentativas falhadas de somar a todo o investimento de mega produção e divulgação a simpatia, ou pelo menos a atenção especial do Vaticano, solicitando audiência particular com o Papa Francisco, o mais que o realizador Darren Aronofsky, o presidente da Paramount e o protagonista Russel Crowe conseguiram foi sentar-se, no dia de São José e juntamente com umas dezenas de pessoas, a uns metros menos de distância do Papa do que milhares de fiéis, na audiência geral na praça de São Pedro. Foi, assim, na mesma condição dos demais, que Russel Crowe teve a oportunidade de receber a bênção de Francisco, mesmo sem palavras, encontro que o ator descreveria posteriormente como ‘uma experiência incrível’ (Variety), com o Papa a manifestar ‘um elevado nível de consistência relativamente ao que tem dito e ao que tem feito’ (mail online). Ou não fosse o Papa Francisco que, desde o início, recusara categoricamente qualquer indício de privilégio à equipa ou tentativa de transformar o encontro numa ação promocional.

‘Noé’ não é nem o filme bíblico que muitos esperavam, nem aquele com que muitos se poderiam surpreender. O próprio realizador afirma-o como ‘o menos bíblico alguma vez feito’ (http://www.newyorker.com) e de facto a obra escapa, em muito, à fidelidade da narrativa bíblica, quer no seu sentido estrito, quer na riqueza da interpretação da sua extraordinária simbologia.

A obra inicia num tempo em que a Terra e a humanidade são ameaçadas pela corrompida ação do homem. Noé, a mulher Naameh e os três filhos, Sem, Cam e Jafet, herdeiros de uma pureza de coração única, vivem afugentados dos humanos. Aqui, a pureza de coração não significa um coração fecundo, uma maior capacidade ou permeabilidade à escuta de Deus, o qual no filme praticamente não tem expressão, mas algo que faz Noé, como premissa, desejar vingança, interpretar literalmente o desejo de Deus de que construa uma barca mas, na maior parte do filme, erroneamente, a missão de que foi confiado. Incluindo na assunção de que afinal a sua própria família deverá terminar ali, naquela barca, o que diverge para um melodrama familiar cada vez mais distante do significado salvífico da aliança de Deus consigo, a aliança sempre possível, sempre disponível com os homens, para um Noé contra tudo e contra todos e para extremos que tentam trazer, entre outros e atabalhoadamente, o tema do aborto a lume. Se é certo que no final a mensagem expressa é a da salvação pelo amor, também é muito provável que entre as deambulações se perca a essência do genuíno significado da narrativa. E é pelo significado, que a simbologia literária e cinematográfica tão bem enriquece, que as narrativas valem.

Perde-se o significado da sempre possível salvação do homem, é subdimensionado o significado ecológico intemporal mas tão pertinente nos dias de hoje, a urgência do olhar ao bem comum. Nem mesmo a construção de Naameh como personagem, uma das explorações mais interessantes do filme que vem resgatar a interpretação literal de Eva, a mulher indutora de pecado, chega para suportar uma tão divergente leitura da relação de Deus com os homens. O sobredimensionamento da personagem Noé, porventura com a intenção de que lhe conferir uma humana fragilidade igual à dos outros homens, acaba por ter o efeito reverso, votando-o à mesma literalidade a que o argumento terá tentado escapar.

Cinematograficamente, procurando combinar fantástico, tradição, ficção e inovação, o filme não se destaca. Sem a originalidade, a profundidade e a mestria que um empreendimento desses exige, ficciona a tradição, segue fórmulas tradicionais e frágeis onde poderia inovar, fantasia sem grande convicção aquilo com que alguns públicos se poderiam enfim identificar.

O cinema tem a extraordinária capacidade de nos arrebatar e, ao mesmo tempo, nos tocar fundo. Pelo que diz ao nosso íntimo e pelo que nos leva adiante, como a fé. Nos dias de hoje, em que o ruído é norma, fá-lo com melhor resultado pela simplicidade do que pelo rebuscamento. Visual e narrativo. ‘Noé’, de fé ausente, não é esse cinema.

Margarida Ataíde

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