Cinema: Bestas do Sul Selvagem

Louisiana, na atualidade. Na margem dum rio cujo dique separa dois mundos radicalmente diferentes, Hushpuppy vive com o pai em condições depauperadas. No seio duma comunidade que resiste às investidas da assistência social local para expropriá-la, garantindo-lhe as condições de salubridade necessárias, Hushpuppy e o pai são quase tudo o que resta um ao outro. Vivem do que pescam no rio e de algum alimento que o pai, desempregado, doente e invariavelmente alcoolizado, traz quando regressa a casa, o que nem todos os dias acontece.

Quando a doença do pai atinge a fase terminal é tempo de encarar um futuro para Hushpuppy e para aquela comunidade diferente do que todos sonharam. O direito àquela terra e àquele modo de vida não é inequívoco.

Com apenas seis anos, é tempo de Hushpuppy se despedir da infância, enfrentando responsabilidades, assumindo o legado do pai e, inevitavelmente, buscando no sonho o alento para crescer ‘sozinha’…

Aos trinta anos, o realizador nova iorquino Benh Zeitlin destacou-se na última edição do Festival de Sundance (a meca do cinema independente) arrecadando o Grande Prémio do Júri por esta sua primeira longa metragem, após quatro prémios em Cannes (incluindo a Menção Honrosa do Júri Ecuménico e o prémio FIPRESCI) e galardões vários um pouco por todo mundo, a que acrescenta agora a corrida aos Óscares nas categorias de melhores Realizador e Argumento Adaptado.

É, de facto, notável como um ainda jovem realizador consegue na sua primeira grande investida cinematográfica adaptar uma obra que reflete um mundo duro de pobreza e exclusão, atrativa ao miserabilismo e à provocação piedosa, dotando-a da poesia narrativa e visual que a peça original, ‘Juicy and Delicious’, de Lucy Alibar, por si só, não alcançou. Tirando o melhor partido da linguagem cinematográfica para alcançar um registo onde coexistem, harmoniosamente, o tom documental, dramático e onírico. Como se tivesse sido criada de raiz para cinema. 

Capaz de situar o universo que olha nas suas mais vastas dimensões, onde nem a pobreza material das personagens centrais e da comunidade é legitimada, nem a sua riqueza de espírito – resiliência, solidariedade, sentido de identidade, arreigada defesa do seu património e, sobretudo, do seu sonho – diminuída, Benh Zeitlin  revela um assinalável domínio da câmara e uma excelente capacidade de adaptação do argumento, numa boa medida narrativa, fazendo jus às palavras da pequena Hushpuppy: ‘o universo depende de tudo se encaixar perfeitamente’.

Uma história assente em desajustes económicos e sociais que encontra na força do espírito das personagens, na sensibilidade do realizador e no notável desempenho da pequena Quvenzhané Wallis o equilíbrio para a merecida aclamação de que tem sido alvo.

Margarida Ataíde

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Agência ECCLESIA

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