CIBERHUMANITAS – Uma mão, bloco de notas e papel

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

No bolso trago sempre um bloco de notas com um lápis que permite escrever até ao limite do último pedaço de grafite envolta em madeira. Enquanto houver páginas e carbono puro posso dar largas à imaginação e escrever uma palavra, esboçar em traços uma ideia, sem distracções ou limites energéticos que não sejam induzidos pela própria vontade. Os blocos de notas surgiram há muito tempo e desde o passado que são trilhos únicos criados pela unicidade de cada pessoa. Serão substituíveis pelas aplicações digitais?

A primeira diferença sentida está no modo como escrevemos. A mão que traça também se engana, mas menos. No pequeno teclado existente no ecrã, tenho reparado que os enganos distraem o pensamento e que perdemos mais tempo a corrigir a palavra que nos (auto-)corrigiram do que gostaríamos, simplesmente porque inventámos uma palavra que o dicionário incorporado não admite. A digitalização tem este senão da inadmissão do novo que provém de dentro. E ao escrever esta última frase acabei de fazer essa experiência. O dicionário da App não admitiu “inadmissão”, levando-me a duvidar de mim próprio e do meu léxico. Não é mau voltarmo-nos a encontrar com o significado de uma palavra que pensávamos existir e que o ambiente digital coloca em dúvida a sua existência, mas não correremos o risco de uniformizarmos o que escrevemos quando trocamos definitivamente o lápis pelo teclado?

Ao pedir à IA para fazer uma análise de quantas palavras podemos tipicamente escrever em mensagens que trocamos, pensando em estatísticas locais e globais, o resultado apontou para as 300 palavras por dia por pessoa. Em 100 dias teríamos escrito um livro, mas importa notar que as palavras escritas digitalmente destinam-se a alguém, enquanto que num bloco de notas, as palavras do lápis não se destinam a ninguém. Com que cuidado cuidamos das palavras digitais que escrevemos?

A escrita é uma arte subtil de desenvolvimento da nossa identidade. Um grupo de investigadores que estudava a relação entre a escrita académica e a identidade concluiu que «a escrita serve como mais do que um mero instrumento comunicativo; é um processo fundamental através do qual os académicos constroem, negoceiam e afirmam as suas identidades.»— E Roz Ivanič, numa monografia publicada em 1998, salientou que a escrita é um comportamento identitário, e que as pessoas realizam, na escrita, várias possibilidades de si próprias.

O que aconteceria à nossa identidade se começássemos a escrever com a nossa mão e letra seja o que for, sem nos importarmos com quem poderá ler as palavras que escrevermos? De que forma será a minha identidade digital alterada quando retorno ao papel e deixo que a mão expresse com a letra o que vai no meu coração? Haverá dias que escrevo com letras mais direitas e outros com gatafunhos imperceptíveis. Poderão ser expressão da diferença entre um dia tranquilo e outro que me deixou de rastos. Os traços conseguem expressar o que estou a viver, ao passo que os caracteres no ecrã serão sempre iguais e perfeitos. Apenas as gralhas que ele não corrige poderão dar-nos um vislumbre sobre a nossa imperfeição e estado interior (ainda que muito limitadamente), mas a IA fará o possível para nos corrigir e alinhar com a perfeição digital que pretende (e acha que pretendemos) para as nossas mensagens.

Precisamos de alguma imperfeição porque dessa emergem as características únicas de cada pessoa. Num momento da nossa história de evolução tecnológica em que são cada vez mais os conteúdos feitos por alguma Inteligência Artificial, o retorno ao bloco de notas e papel poderá representar um regresso à realidade sensível exterior que nos molda interiormente. Inclusive existem cada vez mais vídeos irreais feitos por Inteligência Artificial de pessoas cujo pensamento respeitamos e procuramos seguir. Na prática, reproduzem um texto feito por alguém com a tonalidade do corpo de outro usado sem a autorização do próprio, levando-nos a questionar a sua identidade. Conseguem sentir o alcance da propagação destas falsidades no confronto com a verdade sobre o que é real ou não? Diante destas experiências comecei a pensar quanta humanidade pode ser-nos devolvida por um simples bloco de notas e um lápis.

Palavras, desenhos, rasuras, pela grafite se traça um pouco de nós no papel e no interior de nós próprios. Sem qualquer risco de gastar bateria, ou de sermos distraídos, num renovado relacionamento com o bloco de notas reencontramos um pouco do espaço de solitude (não solidão) para nos encontrarmos com os nossos próprios pensamentos. Um encontro também com a serenidade do lugar onde estivermos a escrever seja o que for. Um reencontro com a nossa identidade humana através do movimento real da nossa mão, indigitalizável, imperfeiro, incorrigível, único.


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