Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Estava de saída para a missa. Não sabia se havia de levar o telemóvel comigo ou não. Por um momento pensei e decidi não levar. Enquanto caminhava, entrava na igreja, e sentava-me, comecei a pensar. Antigamente, não havia telemóvel e não era necessário. A ideia de estar sempre contactável, pela hipótese de poder surgir alguma mensagem ou telefonema urgente, não existia. E não me lembro de alguma vez ter acontecido uma situação em que tivesse pensado—«se tivesse em casa para atender aquela chamada…»—por isso, de um modo novo e inesperado esta simples experiência levou-me a pensar no tipo de ser humano que nos tornámos a partir do momento em que deixámos que os ambientes digitais digitalizassem a nossa vida sem nos darmos conta disso. Enquanto rezava, sentia a necessidade de um certo retorno ao caminho que nos orienta e torna cada vez mais e melhores humanos. Senti a necessidade de evoluir na reflexão sobre a cibercultura— cultura que emerge do ambiente digital—, para uma reflexão mais profunda dedicada à ciberhumanitas como a humanidade que emerge do ambiente digital.
Dizer “sou humano” não é tão real como dizer “torno-me humano”. Neste sentido, devir humano seria uma expressão mais próxima da nossa experiência quotidiana do que ser humano. O ser humano coloca a tónica do meu pensamento no sujeito, enquanto o devir humano coloca a tónica na sua evolução. O ser humano é e deixa de ser. O devir humano não é porque continuamente deixa de ser para se tornar. Não acredito que tenhamos chegado ao ponto mais alto da evolução humana porque o devir humano é permanente. Costuma-se dizer que, quem não anda para a frente, anda para trás, como se andar para trás fosse um retrocesso, uma involução. Porém, ao menos “anda”, em vez de ficar parado. O devir humano acontece de cada fez que nos pomos a caminhar, independentemente do sentido. Porém, a questão mais profunda que se coloca ao humano em plena evolução são as razões que orientam o seu devir mediante a interacção que tem com o ambiente que o molda enquanto o humano pensa que está a moldar o ambiente. Em particular, estou a pensar no ambiente digital.
Ao dizermos — quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto — significava que a mente do emissor introduz “ruído” alterando a mensagem quando a comunica ao receptor. Ao escrevermos a mensagem, promovemos uma maior fidelidade ao conteúdo a comunicar, daí o valor que tinha (e tem) a carta escrita. As inúmeras cartas que circulavam pelo mundo criavam um ambiente comunicacional entre as pessoas como comunhão de vida e pensamento. Mas o processo era lento e resolvemos inventar, por exemplo, o telégrafo. Porém, em “Walden e a Vida dos Bosques”, Henry David Thoreau referiu-se ao impacto do telégrafo nos relacionamentos entre o Texas e o Maine, dizendo — «Temos grande pressa em construir um telégrafo do Maine até ao Texas; mas talvez Maine e Texas não tenham nada de importante a comunicar.» Ou seja, gradualmente emerge um modo de comunicar feito de pontos, traços e pausas.
Com os computadores, os descodificadores permitiram que letras, números, pontos, vírgulas e outros símbolos se convertessem numa combinação de 0’s e 1’s. E pouco a pouco, a comunicação converte-se em informação transmitida por um novo ambiente, o digital. A comunicação, como encontro de corações da mente, converte-se em rios de informação sem forma, onde a banalidade tem o mesmo peso que a profundidade. Apesar de haver ainda a comunicação auditiva (e agora a visual) entre nós, não existem muitas dúvidas de que a maior parte da comunicação passou a ser escrita em formato digital.
Eu não levava o telefone para a missa pelas mesmas razões que não levava um teclado para escrever uma mensagem a alguém: ambos tinham fio e, por isso, eram fixos. Por outro lado, só um de nós podia usar qualquer um destes instrumentos que traduziam o pensamento em palavras ditas ou escritas. Não estou certo de que pensássemos que o fio estaria a aprisionar o uso, mas o certo é que alguém pensou e foi suficientemente criativo para nos livrarmos dele. Celebrámos o feito com a nossa adesão massiva, mas livrámo-nos também do efeito. Estaria o fio a preservar a qualidade daquilo a que prestávamos atenção? Independentemente da resposta, já não há fio.
Com a comunicação sem fios experimentámos grandes vantagens e o facto de ser um avanço tecnológico irreversível, demonstra que o benefício terá superado o malefício, mas o último só se nota quando damos tempo suficiente para que o seu efeito ganhe proporções visíveis. Ninguém podia prever que o grande efeito da redução da fricção na comunicação, que a ausência do fio gerou, seria o de a superficializar. A mensagem profunda começou a dar lugar à Simples Mensagem Superficial (SMS). De tal modo, que muitos preferem escrever uma curta mensagem para poupar tempo na comunicação. O tempo usado para perguntar “como estás?” tornou-se um incómodo porque o mundo acelerou após eliminar muita da fricção comunicacional existente entre nós. Temos tanta coisa para fazer que um SMS ou mensagem WhatsApp se tornou mais eficaz para comunicar o trigo e o joio porque perdemos um pouco a capacidade de o distinguir. Que devir humano é este que se desenvolve no frenético ambiente digital?
A gota de água que despertou a intenção da ciberhumanitas foi pensar que toco mais vezes num ecrã por dia do que penso em Deus. Consumo mais informação do que vivo em oração. Será a tecnologia, e o que o ambiente digital faz em mim, uma nova forma de religião que morfoseia o meu devir humano de um modo inconsciente? Posso ter o evangelho quotidiano como mais uma App entre outras Apps, mas leio-o e medito-o com a profundidade que gera transformação na minha vida espiritual? Terei a coragem de continuar a deixar o telemóvel em casa e voltar ao missal se quiser acompanhar as leituras? Quem sabe que via ciberhumanitas se gera quando fazemos um sério exame de consciência ao papel dos apegos tecnológicos no devir humano.
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