CIBERHUMANITAS – Cuidar do bem escasso da nossa atenção

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

Abrimos o telemóvel para “só ver uma coisa” e, quando damos por nós, já passaram vinte minutos. Não foi um acidente, mas reflexo de um modelo de negócio. E embora isto já seja quase uma experiência-comum, os hiatos passados em ambientes digitais continuam a revelar uma verdade — que dói — porque toca numa zona íntima da nossa vida: a solidão, a necessidade de pertença, o desejo de um olhar que nos reconheça e traga à existência.

Quem passa muito tempo nas redes sociais pode estar, sem se dar conta disso, a tentar colmatar algum vazio relacional. Não por fraqueza, mas por humanidade. Procura uma palavra de consolo, um comentário atento, uma mensagem inesperada. Procura pequenas migalhas de presença que, em dias difíceis, sabem a pão. O problema não é a migalha. O problema é o moinho que a produz: uma economia de atenção que transforma a nossa vulnerabilidade em permanência, e a permanência em receita financeira para os bolsos de poucos que já têm muito e querem ainda mais.

É aqui que a pergunta ética se torna prática: como encontrar o justo equilíbrio entre o tempo que passamos em ambientes digitais — onde somos continuamente puxados para a reacção — e a possibilidade real de nos humanizarmos através desses mesmos ambientes? A resposta, se quisermos aprender com autores como Cal Newport, não começa pela culpa, nem por uma cruzada anti-tecnologia. Começa por um princípio simples (e exigente): tratar a atenção como um bem escasso e sagrado. Não sagrado no sentido místico, mas no sentido antropológico: é a atenção que dá forma ao que amamos, ao que pensamos e ao que nos tornamos.

Newport insiste numa ideia que vale a pena traduzir para a linguagem quotidiana: não se trata de “usar menos”, trata-se de “usar melhor”. Ou, mais precisamente, de deixar de viver num regime de conectividade por defeito. O “por defeito” — no sentido técnico — é o modo automático, permanente, irreflectido, impulsivo com que vivemos um determinado aspecto da nossa vida. A alternativa é um modo intencional, com regras claras, onde o digital se transforma numa ferramenta e deixa de ser um habitat. Como se faz isto, sem moralismo ou ingenuidade? Creio existirem práticas concretas, pequenas o suficiente para serem executáveis e fortes o suficiente para alterarem o sistema.

A primeira prática é o desenho de fronteiras temporais. Não “quando der”, mas “quando está previsto”. Por exemplo: duas janelas de tempo de x minutos por dia para redes sociais (uma curta, outra moderada), sempre fora do início da manhã e do último bloco da noite. O começo do dia é onde se instala a direcção interior; o final do dia é onde se consolida o ruído. Se entregamos essas duas portas à economia de atenção, ela passa a morar em casa.

A segunda prática é a substituição, não a mera eliminação. Tirar as redes sociais sem pôr nada no seu lugar é como viver um ascetismo que acaba por falhar, porque a necessidade que estava a ser anestesiada continua presente na mente. A pergunta útil é: que forma de presença procuro quando deslizo o dedo pelo ecrã? Muitas vezes é companhia. Então, substitui-se: uma caminhada curta com um telefonema a alguém real; um bloco de leitura que não seja “produtividade”, mas alimento; um ritual doméstico simples (cozinhar, arrumar, cuidar) feito com atenção plena. Não é romantizar, mas reabilitar o real.

A terceira prática é cuidar da higiene do ambiente digital. A atenção não é apenas uma decisão, mas também um contexto. Desactivar as notificações não essenciais é mais do que “uma dica”. Pode tornar-se num acto de soberania. Remover aplicações do ecrã principal, usar o modo “não incomodar” por defeito, e reservar o smartphone para tarefas específicas — isto reduz o vício automático por aumento da fricção do acesso impulsivo. A ética, aqui, faz-se com ergonomia.

A quarta prática é reservar um tempo “sabático” regular, ou seja, estabelecer um bloco semanal sem redes sociais. Cal Newport fala em recuperar espaços para o trabalho profundo e no “Tempo 3.0” refiro que isso serve para termos uma vida plena. Num registo mais humano, podemos dizer que no tempo “sabático” regular podemos recuperar a capacidade de estar com os nossos pensamentos e com os outros sem mediação constante. Um domingo de manhã offline, por exemplo, não é uma penitência, mas um ensaio de liberdade. E é impressionante como, ao fim de algumas semanas, o mundo volta a ter textura.

A quinta prática é a clarificação de valores antes da tecnologia. Em vez de perguntar “quanto tempo devo estar online?”, perguntar: “que relações quero cultivar, que trabalho quero preservar, que tipo de pessoa quero tornar-me?” A partir daí, decide-se quais as ferramentas digitais que servem estes valores e quais os corroem? É uma inversão decisiva: o telemóvel deixa de ser o centro, passa a ser um instrumento periférico.

Até aqui, tudo parece muito “disciplinar”, e é. Mas seria injusto parar aqui sem pensar como o digital também pode humanizar. Pode aproximar quem está longe, dar voz a quem não tinha, criar comunidades de cuidado uns pelos outros, divulgar ciência com rigor e abrir portas a conversas que não aconteceriam de outro modo. Há pessoas para quem a rede é, de facto, um lugar de salvação quotidiana — não por magia, mas pelo acesso a um apoio, linguagem, e pertença que desejam profundamente.

O justo equilíbrio, portanto, não é “menos digital”, mas agir com mais critério, mais intenção e mais presença. É usar o digital para aprofundar o que é humano — e não para o substituir. É reconhecer que a solidão não se cura com estímulos, mas com vínculos, e que os vínculos precisam de tempo não fragmentado, de atenção sem interrupção, de encontros entre pessoas inteiras.

A transformação começa com uma decisão pequena e mensurável. Esta semana, podemos escolher uma fronteira e procurar sermos fiéis como quem protege algo precioso. Pode ser a primeira hora do dia sem ecrãs, ou duas janelas fixas para redes sociais, ou um domingo de manhã offline. Depois, façamos a pergunta que realmente importa—“O que começou a voltar à minha vida quando eu deixei de estar sempre disponível para o ruído?” E, a partir daí, dê o próximo passo. Pois, como dizia o frade fransciscano José Carlos Matias, um dia numa missa de semana—«O barulho não faz bem e o bem não faz barulho.»

O caminho ciberhumanitas não é uma nostalgia do mundo pré-digital, mas um convite à maturidade experiencial. Não é saudável fugir da tecnologia, mas importa saber aprender a habitá-la sem nos perdermos. A economia de atenção quer-nos dispersos e com o tempo fragmentado, mas a vida plena exige que estejamos inteiros. Por isso, escolher a integridade com gestos realistas e concretos pode ser um acto silencioso, mas profundamente revolucionário.


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