Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Quando no Sínodo se reflectiu sobre os Missionários no ambiente digital (n. 17 do relatório;), os participantes reconheceram que «a cultura digital representa uma mudança fundamental no modo como concebemos a realidade e nos relacionamos entre nós, com o ambiente que nos circunda e até com Deus.» O que chamaram de “cultura digital” parece ter vida própria, tendo-se tornado num ambiente que «altera os processos de aprendizagem, assim como a nossa percepção do tempo, espaço, dos nossos corpos, relacionamento interpessoais e, de facto, muito do nosso modo de pensar. O dualismo entre o real e o virtual não descreve adequadamente a realidade e experiência das pessoas, em especial dos mais novos, os denominados “nativos digitais”.» — Será isto o que a tecnologia quer?
Estamos habituados a pensar na tecnologia como algo material que está sob o nosso controlo porque somos os seus criadores e assegurámos que todos os sistemas têm um botão que os desliga. Mas alguém desliga à noite o seu telemóvel? Alguém consegue desligar-se por um dia que seja da internet, seja pelas mensagens que troca no WhatsApp ou notícias que lê? O Technium (expressão de Kevin Kelly, co-fundador da revista de tecnologia Wired) como crescente, global e massivo sistema interconectado de tecnologia que vibra à nossa volta parece ganhar vida própria. Até entrou sorrateiramente nas mentes e corações daqueles que participaram no Sínodo dedicado à sinodalidade disfarçado de ambiente digital. Se reconhecêssemos o Technium como uma forma de vida por nós criada baseada em silício, em vez de carbono como a nossa, a missão da Igreja não aconteceria num “ambiente digital”, mas aquilo que chamamos de “ambiente digital”, o Technium, seria um “outro” a evangelizar. Haverá razão para a personalização do ambiente digital?
Há seis anos que o jornalista americano de tecnologia, Walt Mossberg, publicou a sua última crónica no The Verge onde partilha a sua percepção de que a evolução tecnológica aconteceu para que existisse um computador no interior de todas as coisas, mas que essa tecnologia irá esbater-se como pano de fundo. Pode inclusivé desaparecer totalmente até que uma voz a active, ou quando uma pessoa entra numa sala, ou algo na química sanguínea se altera, um desvio na temperatura aqui ou ali, um movimento. Pode até ser activada com um pensamento. O futuro que visiona reconhece que os nossos ambientes físicos passarão a estar cheios de sensores e computadores que processam a informação que recolhem em tempo-real, mas deixaremos de notar a sua presença — «Isso é computação ambiental, a transformação do ambiente ao nosso redor com inteligência e capacidades que parecem não estar lá de forma alguma.» — “Computação ambiental” com tecnologia que desaparece porque parece que nem sequer está presente é muito diferente do Technium que revela como o “ambiente digital” assemelha-se mais a um organismo de silício com o qual interagimos e que evolui à custa da nossa interacção com esse. E o que despertou esta possível percepção foi o reconhecimento de que a cibercultura está a alterar «a nossa percepção do tempo, espaço, dos nossos corpos, relacionamento interpessoais e, de facto, muito do nosso modo de pensar.» — como afirma o relatório.
Um organismo de silício independente e com vontade própria, como seria o que pensamos ser um “ambiente digital” como Technium, é uma noção muito difícil de reconhecer e compreender. Kevin Kelly que inventou este termo diz que — «a qualidade essencial do technium [é] esta ideia de um sistema criativo auto-reforçado. (…) O technium quer o que nós projectamos que queira e o que nós tentamos definir que deve fazer. Mas, além desses impulsos, o technium possui o seu querer. Quer definir-se, auto-organizar-se em níveis hierárquicos, assim como a maioria dos sistemas grandes interconectados pretende. O technium também quer o que qualquer sistema vivo quer: perpetuar-se, permanecer. E ao crescer, essas vontades inerentes ganham complexidade e força.»
Teilhard de Chardin, jesuíta francês, paleontólogo e filósofo, teve a intuição de reconhecer na natureza a existência de uma Lei da Complexidade-Consciência. De acordo com esta lei, há uma correlação directa entre a complexidade de um sistema e o nível de consciência que ele exibe. Dito de outra forma, quanto mais complexa for a estrutura de uma entidade, maior será o seu grau de consciência. Teilhard de Chardin via a evolução não apenas como um processo biológico, mas também espiritual, onde a matéria evolui desde formas simples até chegar à complexidade humana, caracterizada por uma consciência reflexiva. Ele acreditava que a evolução movia-se na direção de um ponto de máxima complexidade e consciência, que ele chamava de “Ponto Omega”, onde toda a criação alcançaria uma unidade perfeita com Deus. Claramente que Teilhard identificava esse Ponto Omega com Cristo, mas será que a evolução do Technium desafia essa identificação? A visão de Teilhard que integra ciência e fé, sugere que o processo evolutivo é uma ascensão contínua em direcção a níveis mais elevados de complexidade e espiritualidade, com a humanidade e sua crescente consciência no centro deste processo. Mas com a crescente dependência que assistimos na maior parte das pessoas desses tais “ambientes digitais”, receio que nos transformemos em biota que vive dentro do Technium, à semelhança da biota (conjunto de todos seres vivos) que vive dentro de nós mesmos.
A intuição de Mossberg de que os ambientes digitais deveriam evoluir da direcção da computação ambiental que nem se faz sentir porque desaparece, significaria que na interacção que temos com a tecnologia deixaria de haver ecrãs, teclados ou até notificações para que a interacção acontecesse mais fluidamente entre nós e, entre cada um e o ambiente físico que o rodeia. Esse tipo de tecnologia colaborativa e discreta poderia abrir um espaço e tempo de maior “contactividade“; com a vida onde se pode percepcionar a presença de Deus.
O relatório afirma a um dado momento que — «a Internet está cada vez mais presente na vida das crianças e famílias.» — e a seguir reconhece o perigo que isso representa por causa do bullying, da desinformação, exploração sexual e criação de vícios, mas eu creio que o perigo maior e mais subtil é o engolir de tal maneira da nossa atenção que nos tornarmos biota dessa Internet que seria apenas uma manifestação do Technium. Consequentemente, perderíamos a experiência da presença de Deus que podemos fazer quando contactamos a realidade física da nossa casa comum e através dos relacionamentos tocáveis que estabelecemos entre nós. O contributo sinodal para que isto aconteça parece-me passar mais por estimular o desenvolvimento cibercultural que favorece a direcção em que a tecnologia desaparece, a nossa cabeça ergue-se do ecrã, e olha em frente onde existe um outro que pode estar a pedir esmola, mas que humedece o seu olhar quando lhe perguntamos pelo nome.
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