CIBERCULTURA – Tornarmo-nos mais

Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor

A vida tem ritmos, mas não é fixa. Não é sempre a mesma coisa, como poderíamos pensar. Ou, pelo menos, a vida evolui para nos tornarmos sempre mais. O jesuíta e paleontólogo Teilhard de Chardin chamou a isto: a emergência do espírito.

Imagem criada por DALL-E com prompt de Miguel Panão

A tendência de todos nós quando ouvimos a palavra espírito é pensar em algo imaterial e que faz parte de uma realidade transcendente. Isto é, uma realidade que está para além do tempo e do espaço, ainda que se manifeste no tempo e no espaço. Para Teilhard, diz o teólogo americano John Haught — «espírito é o nome para o despertar que está neste momento a acontecer no próprio cosmos e que antes deu origem às moléculas e às células vivas» (1). Esse despertar manifestou-se na nossa espécie como pensamento, consciência do sentido de beleza, do significado profundo que tem cada coisa e na criatividade natural que o ser humano tem para a invenção tecnológica. É por aqui que se revela o caminho em que nos tornamos mais.

Para Haught, “tornamo-nos mais” como expressão da cosmologia futurista de Teilhard de Chardin, significa que nos tornamos mais vivos, conscientes e libertos do determinismo cego. Repito que a vida tem ritmos, mas esses ritmos apenas asseguram a oportunidade de evoluirmos nos aspetos que nos “tornam mais”, transformando-nos, sobretudo, interiormente. Esta evolução do nosso interior é particularmente importante para ler os sinais dos tempos que se sobressaem no mundo onde estamos. E um desses sinais é a emergência dos radicalismos divisivos.

Na Alemanha, o partido de extrema-direita liderado por Alice Weidel ganha terreno e tem feito várias propostas divisivas, como a saída do Euro para voltar ao Marco Alemão, mas uma dessas refere-se à “remigração”, ou seja, a deportação em massa de migrantes em situação irregular. O mesmo prometeu Trump durante a sua campanha. E quando recentemente fui a Lisboa de transporte até ao Oriente, depois de um longo período em que habitualmente ia de carro, notei na reconfiguração cultural de Lisboa com uma presença substancial de outros povos que me faziam sentir estar imerso, literalmente, no “Oriente” ou “Médio-Oriente”. Não era a primeira vez que tinha sentido esta variação cultural em Lisboa. Em Outubro de 2024, quando voltei de uma conferência internacional chamei um Uber e o condutor provinha da Índia. Perguntei-lhe há quanto tempo vivia cá e ele respondeu — “Há quatro anos e você?” — não assumindo à partida que era português, mas deduzindo que vivia em Portugal por levar-me a uma casa e não a um hotel.

Que leitura fazer desta onda que pretende isolar os países daqueles que migram e trazem consigo a sua cultura de origem? As migrações fazem parte da vida planetária desde sempre. Entre a entrada da energia que vem do Sol, e a saída da mesma energia para o espaço, tudo se move. Caso contrário, o planeta continuaria a aquecer ou a arrefecer até encontrar de novo o equilíbrio. Por isso, enquanto houver movimento, a vida evolui. Nesse sentido, estas migrações fazem parte da evolução cultural, e se a nossa visão do mundo for determinista e fechada, são uma ameaça, mas se a visão que tivermos do mundo for a do espírito, podem revelar-se uma riqueza.

Confesso que a impressão que tive em Lisboa-Oriente foi a da visão determinista, e na multiculturalidade, onde estamos juntos, mas divididos por sentir o incómodo do outro. Foi nesse momento que compreendi como a minha vida interior tinha ali uma oportunidade de evoluir e de reencontrar um novo ritmo.

«O futuro é melhor do que qualquer passado.» — é uma das emblemáticas frases de Teilhard de Chardin que expressa como o ser humano evolui por ser um ser-de-esperança. O determinismo, o medo do outro que tem uma cultura diferente da minha, são fruto de uma vida que fixa o seu olhar no passado e anseia por retornar a esse. Estávamos no Paraíso e para lá queremos voltar. Mas a cosmologia futurista de Teilhard é bem mais realista e o Paraíso não se encontra no passado, mas no futuro aqui presente. No já, mas não ainda estudado pelos teólogos como escatologia que significa a razão por detrás das coisas últimas. Um horizonte de esperança que aprende com o passado, mas não se prende a esse.

A esperança é um convite ao movimento, à saída das zonas de conforto, a um “devir” que nos mantém abertos à novidade do outro. A emergência do espírito torna-nos mais conscientes da diversidade dos povos que partilham um espaço comum, como fruto do movimento associado à contínua evolução cultural. Talvez a divisão cultural seja um resultado dos ambientes-bolha que muitos vivem na esfera digital, onde o pensamento está desencarnado. “Tornarmo-nos mais” talvez passe pelo despertar da comunhão natural que faz evoluir os nossos relacionamentos e abre a nossa consciência para a beleza da diversidade cultural.


Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://bit.ly/NewsletterEscritos_MiguelPanao – “Tempo 3.0 – Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo” (Bertrand, Wook, FNAC )

Partilhar:
Scroll to Top