Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário), Blog & Autor
Recentemente ouvi que no mundo medieval se retirássemos Deus, tudo caía. E hoje? Honestamente, creio que pouco ou nada se alteraria na maior parte da vida das pessoas. Porém, se retirássemos a net ou as redes sociais, parece-me que tudo cairia. Será que a tecnologia é a nova religião que ninguém quer admitir ser a sua? Poderemos pensar que a tecnologia é somente um meio, não o fim, e talvez a pergunta não tenha sentido. Ou tem sentido, mas é demasiado incomodativo pensar sobre isso?
No dia do apagão, falharam os computadores ligados à corrente, os telemóveis iam ficando sem bateria, e quem não tivesse rádio ia até ao seu automóvel para ouvir as últimas, ligando o carro (e poluído o ambiente) só para estar a par da situação, mesmo sem nada poder fazer. Naquele momento, estaríamos a sentir a dependência da electricidade ou da tecnologia que essa sustenta?
Como professor e investigador em engenharia, tenho a experiência de que a tecnologia é desenvolvida para resolver os problemas das pessoas e melhorar a sua vida. Mas o que temos assistido é a uma inversão da tecnologia que antes servia a vida para uma vida que sirva a tecnologia sem se dar conta disso, ou chegando mesmo a negá-lo. Captando a nossa atenção em quase todos os momentos do dia, já repararam que passamos mais tempo a nos relacionarmos com a tecnologia do que a nos relacionarmos com Deus? Será possível relacionarmos-nos com Deus através da tecnologia?
De manhã acordas e vês as horas no smartphone que carregas à beira da tua cama. Aproveitas para ver se tens alguma mensagem nova enviada durante a noite, que e-mails chegaram e quais as últimas notícias que circulam pela net. Vais tomar o pequeno-almoço e, se não tens companhia, por que não ver o último vídeo daquele comentador que gostas de ouvir? No trajecto até ao trabalho, se fores de autocarro ou de metro, o mais comum é passares (ou ver os outros passar) o tempo a jogar ou comunicar pelo telemóvel. Chegando ao trabalho, sabendo que uma boa parte das pessoas é trabalhador do conhecimento, o mais provável é sentarem-se como tu em frente a um computador. Ligam-se ao mundo e aos dados para serem produtivos. E se precisas de uma pausa, tomas um café com alguém ou sozinho trincas um Kit-Kat, mas o mais comum será levar o telemóvel contigo e já assisti a pessoas que juntas mantêm a sua conexão com o aparelho em vez de se conectarem com o outro. Se estás nas redes sociais, ao longo do dia poderás partilhar com uma foto ou frase o que estás a viver. Os outros reagem e isso faz-te sentir bem. Realizado. No final do dia relaxas com um passeio pelas redes sociais, a ver o que os outros partilham, ou vês um episódio de uma série que acompanhas. Manténs-te a par novamente das notícias e talvez te deites cedo para dormir. Talvez…
E se de manhã acordasses e pensasses em Deus que está sempre contigo? Aproveitarias para dizer bom dia à esposa, ao filho, ou familiar porque Deus está presente dentro deles. Talvez lesses um texto meditativo ou rezasses em silêncio. Vais tomar o pequeno-almoço e, se não tens companhia, por que não ir junto à janela para escutar o canto dos pássaros? No trajecto até ao trabalho, se fores de autocarro ou de metro, poderás estar atento a cada pessoa. Será que precisa de ajuda em alguma coisa? Chegando ao trabalho, independentemente de seres ou não trabalhador do conhecimento, sabes que fazer a Vontade de Deus é fazer bem o que tens para fazer agora. Por isso, cada palavra escrita, cada gesto dado, cada escuta ou olhar atento pode tornar-se numa experiência de Deus através do quotidiano. Ligas-te ao mundo, ligando-te aos outros para seres o amor que Deus quer que sejas. E se precisas de uma pausa, tomas um café com alguém que costuma estar sozinho e desligas-te do telemóvel para o escutar atentamente. Pois, quem sabe o que Deus poderá querer dizer-te através dessa pessoa. Se estás nas redes sociais, ao te cruzares com a foto de alguém pensas—«e se lhe telefonasse?»—Os outros reagem ao teu telefonema por sentirem que lhes querem bem. Não telefonas para pedir alguma coisa, mas saber como estão. O teu amor realiza-os. No final do tarde, relaxas com um passeio pelas fotos-memória que tiraste com a vida ao longo do dia. Fazes um exame de consciência e sentes-te grato. Pensas em Deus. Lês um livro e o sono sereno cai sobre ti.
Ninguém pretende que o mundo se torne novamente medieval, mas também ninguém pretende que a vida digital, quando se dá um apagão, nos faça sentir vazios. Depois de uma pessoa preencher tanto a sua vida com tecnologia, essa acaba por ser o canal principal que a “re-liga” à realidade, tornando-se a sua (não intencional) religião. Porém, é uma re-ligiosidade virtual, não real. Não sei se estamos suficientemente cientes de estarmos ou não a fazer da tecnologia uma religião. Por vezes falam mais alto aquilo que fazemos do que o modo como pensamos. Fala mais alto o gesto exterior que pode não estar sincronizado com o desejo profundo interior.
Não é preciso sentir que tudo cai se retirarmos Deus da nossa vida, mas ao menos que possamos sentir a saudade do sentido e significado que Ele dá a cada momento, pessoa e lugar. Não é a explicação da realidade que retira espaço a Deus, mas a ocupação do nosso espaço de atenção com o entretenimento infindável que a tecnologia oferece. Numa vida com Deus, o amor é a linguagem universal que nos une à realidade, aos outros e a todas as coisas. Prestemos atenção para não sujeitarmos a vida espiritual a um inesperado apagão.
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